Temos
um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada
Jair
Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para
ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em
vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases
administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350
mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente
misericórdia ou segue a ética e a moral.
O
ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas
políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios.
Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam
soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas
práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a
justiça. O prefectus, agente
romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas
instituições eram mantidas.
Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.
Após
a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento
similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o
grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a
ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais
fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla
definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios
do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por
causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem
freios do fisco em vantagem do poder central.
Os
esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno
absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e
17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios.
Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada
grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio
domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da
centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios.
Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução)
revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a
de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos
municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor
do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do
Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso
Centrão.
Não
citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o
português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os
municípios existem, mas não há foedus com
a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia,
como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na
República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens
Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do
poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres
municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes
subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras
públicas dignas do nome.
Com
documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e
privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as
oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca.
Tal é a gênese do perene Centrão.
As
ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa
Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa
despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos,
históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela
virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em
terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.
Se
a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante
de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde
vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece
governar.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da Razão’ (Perspectiva)
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