Insistir
nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à
direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma
perda de tempo tremenda
Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.
Além
de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden
também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento
no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o
passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de
longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente
aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas,
sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não
tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na
coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden
está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo
algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da
economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel
novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os
conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o
partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente
irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e
filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que
teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de
misericórdia para os Republicanos.
Em
2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a
agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da
pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação
econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças
intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise
existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado
o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos
de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma
extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem
equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre
republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.
Não
há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de
nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no
Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.
Esse
tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e
de longo prazo para um país destroçado.
De
acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de
aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro
mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa
a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos
opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem:
insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por
outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser
interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho
contrário.
Antes
que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera
constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou
rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que
se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Nenhum comentário:
Postar um comentário