A
democracia se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se
deteriora
Existem
pelo menos duas coisas em comum entre a propina paga por empresas de ônibus no
caso Celso Daniel, o acerto de R$ 2 milhões entre Joesley Batista e Aécio Neves e as verbas que Jair Bolsonaro usou para comprar
parlamentares do Centrão, no
caso revelado em furo de reportagem do Estadão.
A
primeira é que nos três episódios – que diferem no tipo de enquadramento em
categorias jurídicas – representantes escolhidos pelo povo agiram às
escondidas. A democracia, por definição, é o império da transparência. Ela se
alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora. Um
político que age por baixo do pano comete um crime de lesa-democracia.
Para repassar verbas aos parlamentares dispostos a vender apoio, o governo federal usou a “emenda do relator”. Trata-se de uma figura jurídica que havia sido abolida em 1993, por estar na raiz do escândalo dos “anões do Orçamento”, e que foi recriada no ano passado. Em entrevista ao Estadão, o economista Gil Castello Branco, especialista em contas públicas, explicou por que tal dispositivo é nocivo à democracia. Ele possibilita, segundo Castello Branco, que emendas parlamentares sejam colocadas numa espécie de caixa-preta, dificultando seu acompanhamento e rastreamento.
Democracia
não é só cumprir regimentos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ela vai
muito além. Implica, como se disse acima, transparência obsessiva. É preciso
também que as verbas governamentais sejam destinadas a obras que cumpram função
pública. Janine foi ministro da Educação, é professor de Ética e autor do
livro A Boa Política,
lançado pela Companhia das Letras. Ele fala sobre democracia no minipodcast da
semana.
A
segunda coisa em comum entre os malfeitos petista, tucano e bolsonarista é que,
mesmo agindo no escurinho da má política, seus protagonistas deixaram rastros –
e foram apanhados.
Parte
da propina paga à prefeitura de Santo André foi depositada no extinto Banespa,
num caso curioso de corrupção com extrato bancário. Joesley gravou sua conversa
com Aécio, e entregou depois o áudio às autoridades. Já os “anões” do
“bolsolão”, nome com o qual o episódio se popularizou nas redes sociais,
solicitaram o dinheiro por ofício.
Nos
textos, pouco se fala sobre a natureza das obras, sua função pública ou
justificativas técnicas. Em vez disso, leem-se expressões que revelam a
combinação por baixo do pano: “minha cota”, “fui contemplado”, “recursos a mim
destinados”.
A
série de reportagens, de autoria de Breno Pires, mostrou que alguns
parlamentares se negaram a apresentar os ofícios solicitados pela Lei da
Transparência. Houve quem alegasse “razões de segurança de Estado”. Como se
pretendessem defender o Brasil de uma suposta invasão externa usando um
exército Brancaleone de tratores superfaturados.
As
reportagens mostraram também que um dos maiores beneficiários das verbas
destinadas via Codevasf, a Companhia
de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do
Parnaíba, foi o Amapá do senador Davi Alcolumbre. O Amapá é famoso pelo rio
Oiapoque, um dos marcos do norte geográfico brasileiro. O rio São Francisco, no
entanto, não passa por lá.
Exaltado por Cartola e Carlos Cachaça num samba-enredo antológico, o São Francisco cumpre funções essenciais de transporte e fornecimento de energia. Já o rio dos crimes de lesa-democracia, como um esgoto, é sempre subterrâneo. A missão do jornalismo é trazer luz às suas águas turvas.
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