Bolsonaro
monta aparelhos paralelos para exercer a chefia da administração federal sob
critérios de vontade e de conveniências pessoais
Um
trabalho exaustivo e minucioso do jornal O Estado de S. Paulo mostrou na semana passada a
existência de fortes indícios de que o governo montou um esquema paralelo para
o manejo das emendas parlamentares ao Orçamento da União a fim de assegurar
apoio no Congresso.
Pouco
antes disso surgiram na CPI da Covid evidências sobre o uso do mesmo tipo de
recurso obscuro no Ministério da Saúde, onde a gestão da pandemia conta com um
grupo de aconselhamento do presidente da República que atua à margem das
orientações da estrutura oficial.
Muito
antes, mais exatamente em maio do ano passado, o país tomou conhecimento de que
numa reunião ministerial ocorrida no mês anterior (22 de abril de 2020) o
presidente da República revelara contar com um “sistema particular de
informações” por não se sentir atendido pelas instâncias formais da área, tais
como a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e até o
setor de inteligência das Forças Armadas.
Voltando
ainda mais no tempo, desde o início do mandato de Jair Bolsonaro sabemos da
atuação, digamos, informal, de filhos e correligionários do presidente na
comunicação governamental, motivo, inclusive, de atritos com aqueles
oficialmente nomeados para funções nesse setor.
Alguns saíram, outros preferiram ficar simulando não perceber a impropriedade, quando não o risco do flerte com a ilegalidade, dessa maneira oficiosa de lidar com assuntos oficiais. Ali viceja o chamado gabinete de ódio de composição e atuação envoltas em sombras.
Isso
é o que por ora conhecemos sobre o conjunto de sujeitos ocultos em ação no que
poderíamos chamar de Planalto profundo. Ainda que não se estabeleça com isso a
existência de um governo paralelo como algo extensivo a todas as áreas, é o
suficiente para constatar a predileção do presidente Jair Bolsonaro por
trabalhar, desorganizada e indisciplinadamente, com instâncias montadas à
margem da máquina do Estado.
“É
evidente a predileção do presidente por operar com instâncias montadas à margem
do Estado formal”
Se
confirmados os indícios de uma reserva de bilhões de reais do Orçamento da
União para o atendimento privilegiado (e sem transparência) de deputados e
senadores, teremos a ocorrência de um crime de responsabilidade. Isso, no
máximo. No mínimo, ficará demonstrada a adesão do governo aos costumes da
velhíssima política.
Vestidas
com roupa nova, as mesmas práticas que há quase trinta anos ensejaram uma CPI
cujo resultado foi a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro
entre os 37 investigados conhecidos como “anões do Orçamento”.
Na
gestão da crise sanitária, as posições do presidente contrárias às orientações
da ciência pareciam ser fruto exclusivo da cabeça dele. A CPI da Covid vem nos
mostrando que Bolsonaro bebia também em outras fontes, buscando respaldo em
gente que nada tinha a ver com a equipe presidencial. Pessoas que desconheciam
procedimentos normativos, como ocorreu no caso do preparo daquela minuta de
decreto para incluir na bula da hidroxicloroquina o tratamento para a Covid-19,
ao arrepio das exigências legais.
O
episódio da notória reunião do fatídico 22 abril foi o mais explícito sobre os
métodos presidenciais de operação, fundados no aconselhamento de uma rede de
conhecidos que compartilham das posições dele. Ali o presidente, sem imaginar
que a gravação viria a ser de conhecimento público, criticou fortemente a
Polícia Federal (“não me dá informações”), “as inteligências das Forças
Armadas” e a Abin. Todas por não o atenderem de acordo com seus desejos e
poderes que acredita ter.
Daí
foi que revelou a existência de um “sistema particular de informações”. Ele
mesmo tratou de descrever o perfil e o funcionamento do tal sistema. “É o
sargento do batalhão do Bope do Rio de Janeiro, é o capitão do grupo de
artilharia lá de Fortaleza, é o policial civil que tá em Manaus, é meu amigo
que tá na reserva e me traz informação da fronteira”, disse ele, ressaltando a
eficácia do assessoramento e ao mesmo tempo atribuindo a ineficiência das
instâncias formais ao “aparelhamento das instituições”.
A
solução encontrada pelo presidente, ao que se viu e se vê agora de maneira
ampliada, foi montar aparelhos paralelos para exercer a chefia da administração
federal como quem toca uma reforma em casa sob critérios de vontade e de
conveniências pessoais. Um indubitável desvio dos ditames a que está submetido
o exercício da Presidência da República.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738
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