Folha de S. Paulo
Hoje em dia parece claro que, além de um
crime, foi um erro
Como previsto pelos especialistas, chegamos
no meio milhão de brasileiros mortos por Covid-19 antes do fim do
primeiro semestre. Só agora começamos a calcular quantos, dentre eles, foram
mortos diretamente, documentadamente, pelas decisões de Jair Bolsonaro.
As revelações da CPI sobre os contratos de
compra de vacinas, quando inseridas em modelos epidemiológicos construídos com
o que já sabemos sobre a relação entre vacinação e mortandade, colocava 90
mil mortes nas costas de Bolsonaro com os números até o final de maio.
Isso foi antes de sabermos que ele se recusou a comprar 43 milhões de doses do
consórcio Covax Facility. Com as novas informações e os mortos de junho, mal dá
para ver a marca de cem mil no retrovisor.
Desde fevereiro, quando, segundo
estimativas do jornal O Estado de S. Paulo, já teria sido possível vacinar
todos os idosos brasileiros se a oferta do Butantã em 2020 tivesse sido aceita
por Bolsonaro, o número de brasileiros mortos dobrou.
Por que Bolsonaro fez isso? Hoje em dia parece claro que, além de um crime, foi um erro. Se Bolsonaro perder a eleição de 2022, terá sido pelas centenas de milhares, talvez pelo milhão de mortes que causou entre 2020 e 2021.
Por que, você deve estar pensando, esse
idiota não comprou as vacinas? Por que este imbecil não tentou unir o país com
um discurso de mobilização nacional contra a pandemia? Se tivesse feito isso,
sua reeleição seria certa. Bolsonaro foi um dos poucos líderes mundiais cuja
popularidade não subiu no começo da pandemia.
Bolsonaro deixou essa gente toda morrer por
três motivos.
O primeiro foi ideologia: uma desconfiança
populista dos especialistas, aversão ao "globalismo" da Organização
Mundial de Saúde, ódio visceral dos chineses, a influência ideológica de
Donald Trump e da direita radical americana, a dificuldade de encaixar
problemas complexos do mundo real na retórica paranoica do bolsonarismo. É
sempre bom lembrar que a primeira demonstração clara de insatisfação de
Bolsonaro contra as medidas de isolamento social foi sua reação aos apelos para
que cancelasse a primeira de suas manifestações golpistas de 2020.
O segundo motivo foi cálculo eleitoral.
Bolsonaro temia que as medidas de contenção da pandemia derrubassem a economia
e ameaçassem sua reeleição em 2022. Com sua aposta na promoção da
"imunidade de rebanho", documentada em estudo dos pesquisadores Deisy
Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, Bolsonaro esperava que os curados
ficassem imunes, a economia continuasse rodando e os mortos não votassem em
2022. Se os brasileiros se mostrassem um rebanho recalcitrante, Bolsonaro lhes
ofereceria a falsa esperança de cura pela cloroquina.
Quase deu certo. A popularidade de
Bolsonaro sobreviveu bem à primeira onda da pandemia, e só voltou a cair porque
o auxílio emergencial foi cancelado, com requintes de crueldade, na hora em que
a segunda onda se formava. Mesmo assim, se
a alta das commodities ajudar a economia, Bolsonaro pode
testar de novo ano que vem a hipótese de que genocídio
não custa voto.
Mas o terceiro motivo pelo qual Bolsonaro
mandou tantos brasileiros para a morte por asfixia é o que realmente deve nos
preocupar como país.
Foi porque nós deixamos.
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