Para cientista político, trocar eleições proporcionais por ‘distritão' não fortalece partidos, não aumenta legitimidade nem torna eleições mais baratas: ‘só beneficia os políticos que o defendem’
Adriana Ferraz / O Estado de S. Paulo
Desde 1998, quando participou pela primeira
vez de uma comissão criada pela Câmara dos Deputados para
debater reforma política, o pesquisador Jairo Nicolau se vê diante da
proposta de o Brasil trocar seu atual sistema eleitoral, que hoje funciona de
forma proporcional, pelo chamado distritão. “Mas é inacreditável que o Brasil,
numa hora dessas, com tantos desafios, esteja tentando aprovar o pior sistema
eleitoral do mundo”, disse, em entrevista ao Estadão.
Para Nicolau, fora a simplicidade do modelo (no distritão são eleitos os deputados mais votados por Estado, descartando-se os votos na legenda), não há qualquer virtude na troca. “Não fortalece partidos, não aumenta a legitimidade eleitoral, não torna as eleições mais baratas. Só beneficia os políticos que o defendem.”
Ele avalia ainda que temas como sistema eleitoral, voto facultativo e candidatura avulsa – todos atualmente em debate – deveriam ser tratados por uma Assembleia Constituinte e com participação popular, o que não é o caso das discussões de agora na Câmara.
A seguir, os
principais trechos da entrevista:
O Brasil precisa de uma nova reforma
político-eleitoral?
Todo país pode discutir suas instituições,
seu pacto social. O Chile está passando por isso, é natural. Mas não pode ser
feito dessa forma, com deputados que não são especialistas no tema, sem
audiências públicas e com essa agenda. Os temas tratados são dignos de uma
Constituinte. E olha que as Constituintes de 1946 e 1988 não mexeram em nada
disso, mantiveram a representação proporcional, a desigualdade da representação
dos Estados na Câmara, o voto obrigatório. São escolhas que têm a ver com a
nossa cara como democracia, como República.
O distritão também voltou a ser cogitado.
Qual sua opinião?
É o tipo de solução para um problema que ninguém apresentou. Preferência por sistema eleitoral não é como preferência por um tipo de filme. Eu gosto de western, outros gostam de filme romântico. Não é assim que funciona. Vamos agora entrar no sistema de comédia pastelão? A gente tem uma escolha institucional que pode não estar funcionando, mas, dentro do cardápio de sistemas eleitorais testados no mundo, esse ou aquele são soluções para resolver tal problema. E o distritão resolve qual problema?
Uma das alegações é a de que é um sistema
mais simples.
Sim, ok, é um sistema mais simples, mas o
sistema proporcional funciona desde 1945. Todas as legislaturas da Câmara
antes, durante a ditadura e depois foram eleitas nesse modelo. Quantas vezes
algum deputado reclamou da complexidade? Cada um faz as suas contas e nunca o
tema da simplicidade apareceu. E por quê? Porque fora a simplicidade não há
nenhum tipo de virtude no distritão. Não fortalece partidos, não aumenta a
legitimidade eleitoral, não torna as eleições mais baratas. Só beneficia os
políticos que o defendem.
Os partidos seriam prejudicados com essa
troca?
O cenário é tenebroso do ponto de vista
partidário. O distritão estimula o hiperindividualismo político, o que é
péssimo. O deputado passa a ter grande autonomia, pode negociar apoio direto
com o presidente, com suas bases, sua igreja. Tudo isso sem depender de
partidos, de colegas. Esse, sim, pode ser o primeiro passo da candidatura
avulsa. Vão querer copiar o modelo do Chile, mas o modelo de lá é para uma
Constituinte.
Que foi instalada por pressão popular...
Sim. Aqui não temos nada disso. Essa
reforma não tem base em nenhum movimento popular ou partidário. Nenhum partido
tem posição clara sobre sistema político-eleitoral. Aí, chega lá uma meia dúzia
de deputados interessados nessa engenhoca, nesse retrocesso que é o distritão,
e conseguem empurrar essa troca no meio de uma tarde chuvosa em uma votação
relâmpago. Aprova-se essa aventura e depois joga a decisão para o Senado.
O senhor vê possibilidade de a proposta ser
aprovada?
Desde que me entendo por cientista
político, isso em meados de 1998, participo de todas as comissões organizadas
na Câmara para estudar reforma político-eleitoral. Em geral, elas não vão muito
longe, mas a última, quando não esperava nada, aprovou o fim das coligações
proporcionais. Nunca acreditei que as coligações um dia iriam acabar. Até hoje
não sei como aprovaram. A Câmara tem uma obsessão por reforma política. Estou
preocupado porque pode ser um passo atrás, um atraso completo.
Depois de aprovar o fim das coligações e a
cláusula de barreira, mexer nas regras de novo seria um erro?
Com o fim das coligações demos um passo
muito importante para termos um sistema mais eficiente, com um quadro mais
enxuto de partidos. E olhe, estamos vendo já um movimento esperado por essa
reforma: veja que o deputado Marcelo Freixo e o governador Flávio Dino
anunciaram que estão indo para o PSB, que virou a bola da vez. O PSD se
incorporou também, assim como o PSDB também vai. Os partidos menores vão penar
porque vão ficar sem recursos. A última reforma é boa. Nunca esperei isso, mas
é. Cláusula de desempenho e fim das coligações. Estamos no melhor dos mundos. É
preciso deixar decantar essas reformas para que elas produzam os efeitos
desejados.
O senhor já disse que o distritão é o pior
sistema do mundo. Por quê?
Foi feita uma consulta a cientistas políticos do mundo inteiro – fiz um artigo sobre isso – para classificar os sistemas eleitorais. O distritão foi o mais rejeitado. É um sistema do século 19, temos de ser enfáticos no retrocesso que significaria. O único país relevante que usa é o Iraque. Não precisa falar mais nada, é um país onde não há partidos. E aqui existe essa obsessão pelo pior sistema eleitoral do mundo numa hora em que esse debate não está sendo feito com a sociedade, com a academia e nem sequer com os partidos, que estão preocupados é com 2022.
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