O Globo
Uma pena que o Bozo não pratique o debate
de ideias e esteja afastado (desde os tempos de cabo) dos livros. Assim, não
imagino o que pensaria da constatação do filósofo francês Luc Ferry, ministro
da Educação no governo de Jacques Chirac: acabaram as paixões, e lá se foi o
tempo de dar a vida pela política, religião ou qualquer outra criação humana.
Por que motivo você daria sua vida? Ou
melhor: existe algo que vale sua vida?
Outro filósofo, o romano Lúcio Sêneca,
alertava contra as emoções desmedidas. Em sua visão, os exageros dos
sentimentos obnubilam a existência. Pregava algo como o esquecimento das
paixões.
Sêneca, tutor de Nero, foi depois condenado
à morte por seu ex-pupilo, o imperador paranoico, espécie de Bozo da
Antiguidade. Diante da demora do efeito do veneno, rasgou as próprias veias.
Matou-se não por paixão, mas por ética.
Por que ideia alguém hoje tiraria a própria
vida? Para a defesa da pátria?
As indolentes motociatas bozofrênicas emolduram a ausência da paixão política. Em São Paulo, onde até almoço de batizado tem fila, apenas 6 mil e tantos motoqueiros compareceram à convocação. É um nada. Para não pagar pedágio, motoqueiro de final de semana topa até lavar a cabeça. Impressionava, sim, o número de policiais colocados na segurança dos tiozinhos da motocicleta: cerca de 1.500. Algo como um guarda para cada quatro bozominions.
Nos Estados Unidos, a invasão do Capitólio
impressionou mais pelas fantasias dos militantes que pelo número de sediciosos.
Durante meses, Trump fez sua convocação para o ato, e o que se viu era uma
plateia inferior a uma final de Super Bowl.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, talvez
possa ser o marco do fim das grandes paixões. Ali se viu a ruína de um projeto
equivocado, corrompido por ganância, hipocrisia e autoritarismo. Além da falta
de liberdade. Os bolcheviques quiseram matar algo imanente ao ser humano, a
curiosidade em descobrir o novo. Não houvesse iniciativa, o Homo sapiens ainda
viveria nas cavernas.
A decepção com o retrato da razia
soviética, vista como inauguração da era do individualismo, consagra, na década
de 1980, o espírito do yuppie — o canibalismo das relações, o marketing pessoal
e a ostentação opaca das marcas.
O fim de um sonho coletivo, ao dar lugar
apenas a uma aventura individual, curiosamente ressuscita modelos deixados à
margem pelos movimentos da década de 1960. Como boias de sobrevivência de um
mundo perdido, retornam à baila a dita família papai-mamãe e, ainda, a religião
(de resultados).
Quem se habilita a perder a vida pela
família ou pela religião? Vai longe esse tempo. Nem o Malafaia nos daria essa
graça.
A dinâmica da sociedade e a entrada na era
digital (imagine, em 20 anos saímos do fax para a inteligência artificial) por
certo repetem o mesmo receio do futuro experimentado pelos ingleses à beira da
Revolução Industrial. Um medo que resultou em algumas das ideias e análises de
Karl Marx, quando também explodiram tensões religiosas, nacionalistas e
políticas.
Ao contrário daquele momento da História,
quando foram gestadas grandes ideias (ou utopias), do liberalismo ao
socialismo, o individualismo da contemporaneidade oferece os conceitos de
cloroquina e da Terra plana. Mais motociatas nos fins de semana. No lugar de
vacinas, passeios com dinheiro público.
Talvez antes houvesse razão em dar a vida
pela revolução ou na crença de uma instância celestial. Mas são utopias
dissolvidas na história construída pelo próprio homem. Ao inventar Deus e
depois matá-lo; ao se ver incapaz de trazer o paraíso celestial ao plano
terrestre, entregou suas utopias maiores para abraçar sonhos mesquinhos.
Basta olhar em volta. Não precisa ir muito
longe.
Hoje o Bozo oferece pedágio livre aos
motoqueiros! Linha de crédito barato apenas para os policiais. Sombra e água
fresca para os militares. Ancorado em seu terceiro casamento, defende a família
— mas qual delas? (Vale lembrar que comunista casa menos.) Um crédulo de
Malafaia, quer armas para toda a população. Dizia que a ditadura militar matou
poucos opositores, e agora seu governo está diante da cifra de mais de 500 mil
mortos. Em breve, a nota de três reais com a estampa do Queiroz.
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