O Estado de S. Paulo
Especialmente agora, quando ‘fake news’ são
vomitadas por atacado, de forma organizada
A credibilidade da História faz todos
tentarem se apropriar dela. Ouvimos o tempo todo frases como “a História ensina
que...”, ou sua variante mais humilde “temos de aprender com a História” e
ainda “a História é a mestra da vida”. Mas, na verdade, a maioria das pessoas
não quer aprender com a História, mas ensiná-la. Cada um do seu jeito. Alguns
ainda se dão antes ao trabalho de estudá-la, outros nem isso. Veja-se o que
acontece com as pessoas que usam o passado, real ou imaginado, para tirar e
ensinar lições. E os governantes, então... Chamam suas deturpações de versões,
ou narrativas, para passar mais confiança. Mas, geralmente, são deturpações
mesmo.
Todo mundo sabe que governantes autoritários torturam a História para ver se ela confessa e declara o que eles querem ouvir. Governos antidemocráticos odeiam a verdade. A verdade revela coisas que eles não admitem em público, embora não tenham o menor pudor de praticá-las no dia a dia. Ditadores e candidatos a ditadores têm um esquema sólido para alimentar seus seguidores com mentiras. Atentados contra a cidadania, a ciência, a natureza, a Justiça, a educação são perpetrados a toda hora. Governos autoritários se ocupam em escondê-los e para isso contratam especialistas em marketing. Verbas astronômicas, desviadas da saúde, da educação, da habitação, do bem-estar dos cidadãos, são usadas em propaganda. E veículos sérios da imprensa são punidos com verbas insignificantes, ou nenhuma verba, por sua independência. Afinal, os cofres oficiais estão nas mãos do governo e agradecer ou punir a mídia depende apenas de sua boa vontade.
Não, ser infiel à verdade dos fatos não é
algo que surgiu agora. Governantes e políticos praticam isso há muitos séculos.
Hamurabi, ao codificar as leis de seu império, fez questão de se mostrar justo,
generoso, operante, dinâmico, como se estivesse fazendo campanha eleitoral.
Ramsés II mandava raspar o nome de dirigentes anteriores de monumentos e
colocar o seu, para ficar com o crédito de obras e conquistas militares. Reis
tinham seus próprios “historiadores”, cuja função era mostrar a grandeza dos
soberanos a que serviam. Os nazistas até criaram um campo de concentração “de
artistas”, Terezin, para mostrar como se tratavam bem os prisioneiros,
particularmente os judeus. Mas nunca se fez isso de forma mais intensa e
desavergonhada do que hoje em dia. Governantes se comunicam diretamente com os
cidadãos pelas redes sociais, bancam a difusão de fake news, politizam questões
científicas, distorcem acontecimentos para plantar versões que lhes agradem com
a finalidade de favorecer sua ideologia ou seu projeto de poder.
Verdade seja dita, o ataque à verdade
histórica não provém apenas de governos. Militantes organizados também se acham
no direito (e, segundo suas convicções, na obrigação) de nos impingir sua
versão sobre os fatos. Muitas vezes há choque frontal entre o que aconteceu e a
“interpretação” que eles dão ao acontecido. Nesses casos, pior para os fatos,
que saem perdendo, uma vez que o compromisso do militante – tenha ou não boas
causas – é apenas com sua militância. Interpretações “convenientes” também são
ataques contra a História.
Um amigo historiador conta que até sua tia,
uma senhora simpática e de bom gênio, tem o péssimo hábito de receber mensagens
geradas sabe-se lá onde e as pôr em circulação, como se fossem verdades.
Mensagens que afrontam a ciência, que reproduzem argumentos antidemocráticos,
que alertam contra supostos perigos das vacinas “demonstram” a suspeição dos
nossos tribunais, explicam os motivos que nos devem levar a acabar com a Câmara
dos Deputados e o Senado. Repassar informações que não informam também pode ser
um atentado à verdade histórica.
A História pode e precisa ser defendida.
Especialmente agora, quando as mentiras, que sempre existiram, ganham dimensão
diferente, com fake
news vomitadas por atacado, de forma organizada. Alguns
governantes, em vários países do planeta, embora eleitos democraticamente,
colocam-se em posição de negar a democracia, as eleições, o direito à palavra
dos opositores. Há mesmo lugares onde opositores são sumariamente presos, aí,
sim, por uma Justiça corrupta. Em outros, os governantes estabelecem um esquema
paramilitar destinado a calar os que se opõem às suas decisões e ambições. E
uma vez mais se usa a História para esconder, distorcer, mentir.
E há mais: querem mudar a História
utilizando a técnica do negacionismo, recusando-se a admitir fatos comprovados.
Repressão conduzida pelo governo militar nos anos de chumbo? “Isso nunca
existiu.” O massacre dos armênios pelos turcos, no começo do século 20? Pura
invenção. O Holocausto, que dizimou o judaísmo europeu, uma cultura que existia
havia mais de sete séculos? “Invenção.” Negacionismo é, provavelmente, a forma
mais deslavada de negar a História.
Sim, estão em guerra contra a História. Há que cerrar fileiras e combater pela História. Não merecemos viver na mentira.
*Historiador, professor titular da Unicamp,
doutor e livre-docente da USP, é autor, coautor e organizador de 30 livros,
incluído ‘Novos combates pela história’
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