EDITORIAIS
Guerra e paz
Revista Veja
Novo chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira é
um hábil negociador e adepto da ponderação. Mas sua tarefa não será fácil em um
governo em eterno confronto
Tido como um dos mais competentes chefes de governo da história, Winston Churchill (1874-1965) era também um grande frasista. Entre as várias pérolas de sabedoria política ditas em sua carreira, o ex-primeiro-ministro britânico dizia: “Na vitória, seja magnânimo”. Para ele, o vencedor de uma batalha, fosse política ou por territórios, não deveria tripudiar sobre o perdedor, mas demonstrar um sentimento de grandeza que não apenas desanuviaria o ambiente como seria o ponto de partida de uma nova composição. Infelizmente, o presidente Jair Bolsonaro não vem comungando do mesmo pensamento. Depois de dois anos e sete meses na Presidência, eleito com uma vitória robusta, o atual ocupante do Palácio do Planalto tem escolhido até aqui um estilo de gestão baseado em permanente estado de guerra, atirando em inimigos (reais ou imaginários) quase diariamente, criando instabilidades desnecessárias e, muitas vezes, ameaçando as instituições. Com esse comportamento, Bolsonaro pretende agradar ao núcleo duro de sua base radical, mas comprometeu de tal forma a governabilidade que várias camadas que apoiaram sua candidatura em 2018 hoje procuram alternativas.
Confrontado nas últimas semanas com a perda
de sustentação política e popularidade, fatores que podem apeá-lo do poder — em
um processo de impeachment ou nas urnas em 2022 —, Bolsonaro agora parece ter
optado por um caminho diferente. O convite para que o senador Ciro Nogueira, do
PP, assuma a Casa Civil é uma manobra absolutamente dissonante da estratégia
bélica anterior. Um dos expoentes do chamado Centrão, Nogueira foi base de
apoio de quase todos os governos nos últimos 26 anos, de Fernando Henrique às
administrações petistas, uma espécie de camaleão político que defende o poder
da ocasião, independentemente de ideologia, desde que seja agraciado com verbas
e cargos. Pragmaticamente, porém, trata-se de uma aposta acertada. Em termos
eleitorais, Bolsonaro reforça seus laços com partidos que lhe darão uma
estrutura mais parruda de verbas, capilaridade e tempo de TV. Do ponto de vista
da estabilidade democrática, também é uma boa escolha. Embora tenha defeitos
sobejamente conhecidos, Nogueira é um hábil negociador, artigo raro na
administração atual, um profundo conhecedor de Brasília e adepto da ponderação
— e não da guerra infinita entre poderes.
A questão, tema da reportagem que começa na
página 28, é saber até que ponto, e em quais condições, o senador piauiense
poderá implementar seu estilo apaziguador. Uma coisa é certa: a tarefa não será
fácil. Em primeiro lugar, porque, cedo ou tarde, o próprio Bolsonaro deve
capitanear uma nova crise institucional, uma vez que ainda não entendeu que um
presidente pode, sim, ser sincero e autêntico — mas não pode dizer tudo que
pensa o tempo todo. Em paralelo, o novo ministro da Casa Civil enfrentará uma
intensa oposição interna, de vários de seus colegas de ministério, que preferem
dizer amém ao presidente, de forma constrangedoramente subserviente, a
confrontar suas posições mais polêmicas. Em ocasiões anteriores, Nogueira
acertadamente se disse contra o retorno do voto impresso, esse terraplanismo
eleitoral bolsonarista, e evidentemente não parece disposto a arranca-rabos
com o Supremo Tribunal Federal ou o Congresso. Por tudo isso, é difícil dizer
até quando essa aliança entre governo e Centrão (que já existia, mas agora
alcança um patamar inédito) permanecerá. Ciro & cia., como se sabe, não são
adeptos de relacionamentos conturbados em que seus valores não sejam
reconhecidos. E Bolsonaro, óbvia e infelizmente, está muito longe de ser um
Winston Churchill.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de
2021, edição nº 2749
Como enfrentar a impostura
O Estado de S. Paulo
O presidente não mente de forma eventual, mas sistemática. A reação a isso deve ser institucional, com economia rigorosa de expletivos e exclamações
O presidente Jair Bolsonaro deu 1.682
declarações falsas ou enganosas em 2020, o que dá uma média de 4,3 por dia,
segundo um estudo anual divulgado ontem pela Artigo 19, organização britânica
de defesa da liberdade de expressão.
Esse espantoso número mostra que o
presidente não mente apenas de forma eventual, mas sistematicamente, o que
constitui um evidente método. Sua intenção, já está claro, é usar o destaque
conferido a seu cargo para confundir a opinião pública, de modo a dificultar a
formação de consensos sobre a realidade. Sem esses consensos mínimos, o debate
democrático se torna inviável, o que é precisamente o que Bolsonaro almeja.
Não à toa, como mostra o mesmo estudo, o presidente e seus assessores deram nada menos que 464 declarações públicas contra a imprensa em 2020, justamente para desacreditar as informações baseadas na realidade – matéria-prima do jornalismo profissional – e legitimar distorções produzidas pelo departamento de agitação e propaganda do bolsonarismo.
Se não traz novidade, pois afinal a
mendacidade crônica de Bolsonaro e de seus camisas pardas, a esta altura, já é
notícia velha, o estudo da Artigo 19 tem o mérito de dar a dimensão chocante
daquilo que apenas se intuía: para Bolsonaro, mentir é uma virtude, talvez a
principal da seita que lidera.
Um presidente com essas características
impõe desafios inéditos na história republicana. As instituições democráticas,
por definição, devem se alicerçar na veracidade dos fatos, para que as decisões
que afetam a sociedade respeitem a realidade e, assim, sejam efetivas e aceitas
como legítimas mesmo por aqueles que a elas se opuseram.
Quando a mentira impera nas mais altas
esferas de governo, as decisões das instituições democráticas serão sempre
objeto de desconfiança, instaurando-se o conflito – que é precisamente o
combustível dos regimes de vocação autoritária. O conflito, tal como idealizado
por esses governos, presume a criação de inimigos ubíquos, cujo combate demanda
a politização dos menores aspectos da vida cotidiana, impedindo, mesmo nas
relações pessoais e familiares, a formação de consensos triviais.
É claro que, num tal estado de coisas, a
democracia se inviabiliza, razão pela qual as instituições democráticas devem
reagir com firmeza a cada mentira proferida pelo presidente.
No entanto, essa reação deve ser, com o
perdão da redundância, institucional. Isto é, deve se limitar a demonstrar as
mentiras do presidente, com economia rigorosa de expletivos e exclamações.
Deixar-se levar pela emoção, produzindo respostas exageradas às imposturas
presidenciais, é fazer exatamente o que pretendem os vândalos da democracia:
rebaixar o debate ao nível da briga de rua.
Por esse motivo, não foi adequada a recente
reação do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de sua Secretaria de
Comunicação, à enésima declaração do presidente Bolsonaro acerca das decisões
da Corte que, segundo ele, o impediram de interferir na administração do
combate à pandemia de covid-19.
“O STF não proibiu o governo federal de
agir na pandemia! Uma mentira contada mil vezes não vira verdade!”, exclamou o
Supremo em sua conta no Twitter, ao divulgar um vídeo para esclarecer que
jamais proibiu Bolsonaro de trabalhar para conter a pandemia.
Além do tom indignado, fora de lugar, o uso
de uma expressão que serve frequentemente para caracterizar a propaganda do
regime nazista (“Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”) cria
desnecessário ruído.
Ademais, e isso talvez seja o mais
importante, não serão comparações com o nazismo que farão o presidente se
emendar. Ao reagir à mensagem do Supremo, Bolsonaro mentiu novamente, dizendo
que a Corte “cometeu crime” por ter dado a governadores e prefeitos a
possibilidade de “suprimir todo e qualquer direito previsto no inciso (sic) 5.º da Constituição, inclusive
o ir e vir” – em referência às medidas de isolamento social. E arrematou:
“Fizeram barbaridades acobertados pelo Supremo”.
Como se vê, ao presidente interessa
transformar o País numa imensa rinha de galos. Nela, Bolsonaro joga em casa.
A armadilha latino-americana
O Estado de S. Paulo
A região é a segunda mais desigual do mundo e a mais desigual em sua faixa de renda
Entre a desigualdade social e o baixo
crescimento é difícil saber qual é o ovo e qual a galinha, mas ambos se
reforçam mutuamente: países mais pobres são mais desiguais e vice-versa. A
América Latina é a segunda região mais desigual do mundo e a mais desigual em
sua faixa de renda. Não surpreende que o último relatório do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para a região se intitule Presos numa Armadilha.
Na década de 2000, o crescimento econômico,
a redução da lacuna entre os salários dos empregos mais e menos qualificados e
os programas de transferência de renda reduziram a desigualdade. Mas a tendência
se estancou na década de 2010, que naturalmente se encerrou com uma onda de
protestos em 2019, sufocados pela pandemia em 2020.
A pandemia pesou mais sobre quem já estava
para trás. As perspectivas são mais tenebrosas ante o impacto desigual sobre os
estudantes. A América Latina tem a menor taxa de mobilidade educativa
intergeracional e a pandemia deve reforçar esse padrão ligado ao seu
crescimento volátil e medíocre.
A percepção de injustiça é generalizada,
não só na distribuição de renda, mas no acesso a serviços públicos e garantias
legais. Para 3 em 4 latino-americanos, seus governos servem aos interesses de
uns poucos poderosos. A maioria acha que a carga tributária deveria aumentar
com a renda, mas o apoio é muito maior entre os 20% mais pobres e muito menor
entre os 20% mais ricos – que concentram 56% da renda.
A concentração de poder político e
econômico resulta em instituições débeis e políticas distorcidas, míopes e
ineficazes. Os mercados latino-americanos tendem a ser dominados por um pequeno
número de empresas gigantes, o que conduz a preços mais altos, incentivos para
tecnologias ineficientes e baixo investimento em inovação.
O poder dos monopólios é em boa parte
responsável pela baixa tributação corporativa e pela resistência a impostos progressivos.
Já os sindicatos, quando não se aliam às grandes empresas para obter
privilégios, com frequência trabalham para reduzir as desigualdades entre
empregadores e empregados exclusivamente do seu segmento, exacerbando as
disparidades nos demais.
Um fator que é perpetuado pela armadilha
latino-americana é a violência. A região abriga 9% da população mundial, mas
responde por 34% dos homicídios. A violência deteriora direitos e liberdades;
prejudica resultados educativos e a saúde física e mental; reduz a participação
no trabalho e na política; ameaça instituições democráticas; e obstrui a
provisão de bens públicos aos vulneráveis.
Outro fator são os incentivos políticos a
soluções demagógicas, de curto prazo, fragmentadas e ineficazes. A cisão da seguridade
latino-americana entre trabalhadores formais (cobertos por programas
contributivos, estabilidade de emprego e regulações de salário mínimo) e
trabalhadores informais (servidos por programas não contributivos) é
responsável pela baixa eficácia do sistema de proteção e impactos
contraditórios sobre a desigualdade. O Pnud enfatiza a importância de uma
agenda de proteções sociais universais, mais inclusivas e redistributivas,
fiscalmente sustentáveis e favoráveis ao crescimento.
“Os lares pobres precisam de transferência
de renda e seguridade social, não de um ou de outro.” Mas “ao invés de
atuar ex ante para
prevenir a pobreza, as políticas reagem apenas ex post para mitigá-las”. Em geral, as taxas de
pobreza na região diminuem por programas de transferência de renda e não porque
a renda dos pobres aumentou. Uma boa arquitetura social deveria não só
assegurar o bem-estar das famílias vulneráveis, mas incentivar trabalhadores e
empresas a melhorar sua produtividade.
À armadilha da desigualdade e do baixo
crescimento subjazem engrenagens complexas, como a concentração de poder, a
violência, e programas de proteção social e marcos regulatórios do mercado de
trabalho ineficientes e distorcidos. Enquanto o enfrentamento a esse quadro não
for igualmente complexo, os latino-americanos seguirão aprisionados em seu
subdesenvolvimento.
Prudência
O Estado de S. Paulo
Queda dos números de casos e mortes por covid-19 não é senha para flexibilização total
Ainda morrem no Brasil, em média, cerca de
1.100 pessoas por dia em decorrência da covid-19. Diariamente, são registrados
perto de 47 mil novos casos da doença. São números apavorantes, que a Nação não
pode simplesmente tratar como se este fosse o curso natural da peste, um fato
da natureza contra o qual nada há de ser feito ou, pior, um patamar aceitável
de vidas perdidas.
A estatística atual pode até parecer
tranquilizadora para muitos, haja vista que até poucos meses atrás os
brasileiros conviviam com registros diários de casos e mortes duas ou três
vezes piores. Seja como for, a despeito do esgotamento da sociedade e do justo
anseio pelo fim das restrições, o Brasil ainda está de joelhos diante de um
vírus que já matou 554 mil de seus cidadãos e continuará matando enquanto
houver oportunidade para se disseminar.
O avanço da vacinação tem limitado o espaço
de circulação do patógeno e contribuído para a redução do número de casos
graves de covid-19 e de mortes. A pressão sobre os sistemas de saúde das redes
pública e privada tem arrefecido. Em São Paulo, por exemplo, a taxa de ocupação
de leitos de UTI para covid-19 está em 53%, a menor de 2021 registrada no
Estado. As internações também caíram 62,7% e os óbitos tiveram queda de 57% em
relação ao pico da segunda onda da pandemia, de acordo com o secretário
estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn.
Diante deste quadro, o governador João
Doria (PSDB) decidiu levantar praticamente todas as restrições sanitárias em
São Paulo a partir do dia 17 de agosto. Apenas eventos que provoquem grandes
aglomerações – como shows, festas em casas noturnas e competições esportivas
com público – seguirão proibidos até que sejam analisados os dados dos chamados
“eventos-teste”. Todas as demais atividades comerciais, culturais e religiosas
não terão qualquer tipo de restrição. De acordo com o plano do Palácio dos
Bandeirantes, São Paulo voltará ao que era antes da pandemia em meados de
agosto.
Antes da liberação plena haverá um período
de transição, batizado como “Retomada Segura”. A operação de flexibilização no
Estado terá início no dia 1o de setembro e irá até o dia 16. Nesta fase, o
horário de fechamento dos estabelecimentos comerciais passará de 23 horas para
zero hora e a ocupação permitida subirá dos atuais 60% para 80% da capacidade
total, “desde que tenhamos a garantia do distanciamento de um metro entre os
frequentadores dos espaços”, disse Patrícia Ellen, secretária estadual de
Desenvolvimento Econômico.
Com menos pressão sobre os hospitais, é
razoável que haja alguma flexibilização das medidas de segurança sanitária.
Epidemiologistas alertam, no entanto, que o País ainda não está em condições de
liberar totalmente a circulação de pessoas. Isto vale para São Paulo. Em que
pesem os registros de estabilidade ou queda nos indicadores de casos e mortes,
os patamares ainda são muito elevados. Além disso, alertam os especialistas, a
circulação da variante Delta do coronavírus impõe doses extras de cautela.
Países muito mais avançados na vacinação do que o Brasil, como é o caso dos Estados
Unidos, tiveram de voltar atrás na flexibilização das medidas sanitárias
justamente por causa dos perigos desta variante.
O Estado de São Paulo já vacinou 75% de sua
população adulta com a 1.ª dose da vacina. Sabe-se que para a imunização
completa são necessárias as duas doses, ou uma vacina de dose única, caso do
imunizante da Janssen. Ainda está longe de ser atingido um porcentual seguro de
pessoas completamente imunizadas, sobretudo diante das constantes falhas na
distribuição de vacinas aos Estados e municípios pelo Ministério da Saúde.
Mas o governador João Doria conta com a assessoria do Comitê de Contingência contra a Covid-19, colegiado composto por alguns dos mais capacitados médicos do País. Espera-se que o governo paulista saiba onde está pisando ao antecipar a liberação das atividades no Estado para meados do mês que vem. Não há margem de tolerância para erros quando é a vida dos cidadãos que corre risco.
Brasil precisa de outro critério para
substituir senadores
O Globo
Ao assumir o Ministério da Casa Civil, Ciro
Nogueira (PP-PI) transmitiu sua cadeira de senador à suplente, sua mãe, a agora
senadora Eliane Nogueira. Com isso, passam a ser oito as cadeiras no Senado
ocupadas por suplentes, quase 10% das 81 da Casa. Na legislatura passada,
chegaram a ser 16. O suplente de senador é uma idiossincrasia indesejável da
nossa democracia: trata-se do único representante do povo que que não recebe um
único voto. Um décimo do Senado, portanto, é hoje composto de nomes que não passaram
pelo crivo das urnas.
Quando um posto vaga na Câmara, numa
Assembleia ou Câmara Municipal, o substituto até a próxima eleição é escolhido
pelo mesmo critério usado para ocupar cadeiras depois do último pleito: é o
próximo na lista de mais votados daquele partido ou coligação, o primeiro a ter
ficado fora na distribuição original. Trata-se de um critério justo, sobretudo
porque leva em conta a vontade do eleitor.
No Senado, não funciona assim. A eleição é
majoritária e, em cada chapa, o candidato precisa indicar dois suplentes, de
acordo com um critério próprio. Os indicados não precisam ter nenhum tipo de
experiência política. Podem ser sócios, amigos ou parentes. Serão esses os
nomes usados para substituí-lo se a cadeira ficar vaga. No caso de Nogueira, a
primeira suplente era a própria mãe dele, uma empresária que jamais exerceu um
cargo público.
Por diversas vezes tentou-se modificar o
critério para a suplência dos senadores. Em 2013, o plenário do Senado aprovou
uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que mantém a indicação sem voto de
suplentes, mas pelo menos a reduz para um único nome por cadeira e veta a
indicação de familiares. A PEC, cujo relator só foi designado em 2019, está até
hoje estacionada na Câmara. Uma outra tentativa de reduzir as suplências
fracassou na minirreforma política de 2017.
Reduzir as suplências de duas para uma e
proibir a indicação de parentes resolve apenas parte do problema. Persiste a
questão de fundo: a possibilidade de que as cadeiras na Casa mais seleta do
Legislativo sejam ocupadas por quem não recebeu um voto sequer. Noutros países
em que o Senado também é eleito por critérios semelhantes, é comum a convocação
de eleições especiais para o preenchimento de cadeiras vagas. No Brasil, isso
só ocorre no caso de impedimento dos dois suplentes ou de cassação de chapa
(como aconteceu com a ex-senadora Selma Arruda).
É preciso pensar numa forma mais
democrática para ocupar as cadeiras vagas no Senado. Um assento no Legislativo
é essencialmente diferente de um cargo Executivo, por isso não faz sentido
comparar os suplentes aos vices. Um candidato a vice faz em geral campanha ao
lado do titular da chapa. Costuma ser político conhecido, escolhido com
frequência pela capacidade de atrair votos.
A convocação de eleições especiais para
vagas no Senado é uma ideia que deveria ser considerada com atenção pelo
Congresso. As substituições no Senado têm sido frequentes, mas não a ponto de
tornar inviáveis esses pleitos, que poderiam contribuir para aproximar ainda
mais o eleitor de seus representantes. No mínimo, a Câmara deveria aprovar a
PEC que recebeu do Senado, para evitar casos absurdos como o senador que vira
ministro e deixa sua cadeira para a própria mãe.
Doria foi precipitado ao anunciar abertura
prematura do comércio
O Globo
O governador de São Paulo, João Doria,
surpreendeu ao anunciar na quarta-feira que, a partir de 17 de agosto, o estado
não terá mais restrições ao funcionamento do comércio. Pela regra atual, os
estabelecimentos podem ocupar até 60% da capacidade de lotação e são obrigados
a fechar às 23h. A partir de domingo, o percentual será de 80%, e o horário
meia-noite. Pouco mais de duas semanas depois, estará tudo liberado.
Doria teve até agora um comportamento mais
sensato diante da pandemia do que o presidente Jair Bolsonaro. Nas suas
aparições públicas, foram raras as vezes em que foi flagrado sem máscara.
Tentou, é verdade, aproveitar politicamente o investimento feito na parceria
com a Sinovac, que resultou na CoronaVac, primeira vacina contra a Covid-19
usada no Brasil. Fez mais marketing do que deveria ou seria razoável e tentou
se promover à custa da vacina. Mesmo assim, nas declarações públicas e na
adoção de políticas sanitárias, sempre se colocou do lado da ciência e da preservação
da vida, em nítido contraste com o presidente.
É por causa desse histórico que causa
espanto o anúncio desta semana. A escolha do dia 17 foi embasada na projeção de
que adultos de 18 anos ou mais terão recebido a primeira dose da vacina até dia
16. Ainda que isso fosse suficiente para determinar a abertura geral, haveria
um problema. Os efeitos da imunização com a primeira dose só surtem efeito após
um período entre dez e 14 dias. A proteção para valer acontece apenas duas
semanas depois da segunda dose.
Chama também a atenção que o governo
paulista não tenha divulgado indicadores para nortear a tomada de decisões a
partir de 17 de agosto. O anúncio da abertura sem restrições aconteceu sem que
a população ou os empresários saibam se a medida poderá ser cancelada e em que
circunstâncias isso aconteceria. É hora de investir em estoques? Contratar? Sem
critérios objetivos para saber o que poderá vir pela frente, a tentativa de
agradar aos setores empresariais é apenas mais um lance de marketing.
O pior da decisão, no entanto, é ela
acontecer num momento em que o estado e o país vivem a expectativa de
crescimento da variante Delta, mais contagiosa do que a originalmente detectada
na China. No Estado de São Paulo, 27% da população adulta recebeu a segunda
dose, e 76% a primeira. Países com índices mais altos de imunização também
decidiram pela abertura irrestrita para, mais tarde, terem de voltar atrás, ao
menos parcialmente.
As restrições têm obviamente efeitos econômicos devastadores e duradouros. Reabrir totalmente precisa ser prioridade nos planos, assim como tomar decisões baseadas na ciência, ter parâmetros claros e ser transparente na comunicação com a população. Na atual fase da pandemia, São Paulo não está dando exemplo.
Não há folga
Folha de S. Paulo
Alta da arrecadação desperta demanda
perigosa por gasto público perto da eleição
O excelente desempenho da receita de
impostos neste ano é uma notícia positiva, mas não deveria suscitar otimismo
prematuro a respeito de sua sustentação nem desencadear demandas eleitoreiras
por mais despesas públicas, dado o quadro de fragilidade orçamentária que ainda
persiste.
A situação é de fato melhor do que se
anunciava há poucos meses. A
arrecadação federal chegou a R$ 897 bilhões no primeiro semestre, alta
de 24,5% (ajustada pela inflação) em relação ao mesmo período do ano passado. A
Receita estima que pouco mais da metade desse crescimento pode ser considerado
recorrente.
Mesmo assim, não se deve tomar o percentual
espantoso como referência, pois a base de comparação em 2020 foi deprimida pelo
impacto da pandemia na atividade econômica. É mais realista considerar o nível
de 2019 —e nesta métrica o ganho fica em apenas 6%.
Na vigência do teto de gastos inscrito na
Constituição, o ganho deste ano se traduzirá num déficit primário (o saldo
entre receitas e despesas antes dos juros) menor que o antecipado, mas ainda
assim estimado pelo governo em 1,8% do Produto Interno Bruto.
Para garantir estabilidade da dívida
pública se necessita de superávits de ao menos 1,5% do PIB, de modo que ainda
resta um ajuste muito relevante a ser feito.
Há muitos fatores a impulsionar a coleta de
impostos, a começar pela retomada mais forte da economia com o avanço da vacinação.
A inflação elevada —mais concentrada no atacado após a disparada do dólar e dos
preços das matérias-primas exportadas pelo país— também pesa, ao favorecer o
lucro empresarial e o faturamento.
A melhora abarca também os governos
estaduais, que em seu conjunto registraram superávit primário de R$ 33,4
bilhões até maio, segundo dados do Banco Central. Também neste caso não
tardarão a aparecer pressões por reajustes de salários e outros gastos, que
ficaram congelados por determinação legal durante a pandemia.
Já é detectável em Brasília a crença de que
há sobra de dinheiro, como a tentativa de quase triplicar o fundo eleitoral, a
voracidade em ampliar emendas parlamentares e mesmo dispêndios meritórios, como
o novo Bolsa Família.
Tudo fica ainda mais perigoso com a
aproximação das eleições e com o centrão no comando de parcelas crescentes do
Orçamento e agora instalado no Planalto.
Cumpre apontar que o Brasil ainda é o país
mais endividado entre os principais emergentes, que é cedo para apostar na
persistência do crescimento da economia e que antes de abrir o cofre há amplo
caminho a trilhar com reformas para aumentar a eficiência do gasto.
Tunísia em suspenso
Folha de S. Paulo
Em meio a crise, ato do presidente gera
dúvida sobre estabilidade democrática
Nascedouro da Primavera Árabe, o movimento
por liberdade e melhores condições de vida que varreu o mundo muçulmano no
início da década passada, a Tunísia teve um destino diferente do das demais
nações sacudidas pelos protestos.
Enquanto a Síria, o Iêmen e a Líbia eram
devastados pela guerra civil, o Egito sucumbia numa contrarrevolução e os
Estados do Golfo reprimiam duramente as manifestações, o país do norte da
África foi o único que conseguiu realizar a transição para a democracia.
Essa conquista histórica encontra-se agora
em risco após o presidente Kais Saied ter
destituído o primeiro-ministro Hichem Mechichi e suspendido as
atividades do Parlamento por 30 dias.
Chamada de golpe pela oposição, a decisão
foi o zênite da crise política, econômica e sanitária que se desenrola no país.
Eleito em 2019 como candidato independente, Saied vinha desde então numa
disputa por espaços de poder com o premiê.
A difícil situação da economia elevou a
tensão social. Com a pandemia, a indústria turística tunisiana, uma das
principais fontes de renda, entrou em colapso. O Produto Interno Bruto encolheu
quase 9% no ano passado, e o desemprego alcança 18% da população.
Houve, ademais, falhas no combate à
Covid-19. A Tunísia amarga a mais elevada taxa de mortes por milhão dentre os
países da África e do Oriente Médio, e um novo pico de casos vem
sobrecarregando o sistema de saúde.
Esse caldeirão entornou no final de semana,
quando protestos eclodiram em diversos pontos do país, e sedes do Ennahda, o
partido islâmico moderado que detém maioria no Parlamento, foram atacadas.
Valendo-se da situação, Saied agiu com base
numa controversa interpretação do artigo 80 da Constituição tunisiana, que
permite ao presidente adotar medidas excepcionais em caso de “perigo iminente”
que ameace a a segurança e a independência do país. A medida, porém, só poderia
ter sido tomada após consulta ao premiê e ao chefe do Parlamento.
Como se não bastasse, o órgão responsável
por decidir sobre a legalidade do ato do presidente, o Tribunal Constitucional,
até hoje não foi criado, por discordâncias acerca da escolha de seus membros.
Nessa conjuntura delicada, é fundamental
que as lideranças recuperem o diálogo e o consenso político que fizeram a
democracia possível —mas, agora, para salvá-la.
Pandemia afeta demografia e reforça novas
prioridades
Valor Econômico
Números reforçam a importância do
investimento na qualidade da educação
A pandemia do novo coronavírus causou
profundas mudanças na demografia do planeta inteiro. Não só morreram mais
idosos, como nasceram menos bebês, e as migrações praticamente estancaram. A
expectativa de vida regrediu pela primeira vez, mesmo sem algum conflito bélico
extenso. O impacto foi diferenciado em cada país conforme a evolução local da
pandemia e a dinâmica populacional, mas são certas as repercussões
generalizadas na produtividade, na previdência social e nas perspectivas
econômicas.
No caso brasileiro já é possível antecipar
a queda da expectativa de vida pela primeira vez em um século. As estimativas
são baseadas em dados do Portal da Transparência do Registro Civil. A redução
pode chegar até dois anos em relação aos 75,9 anos computados em 2019, e
atingir mais os homens. O Brasil contava naquele ano com uma expectativa de
vida superior à média mundial de 73 anos, com tendência de aumento. Na virada
do século XX, em 1900, era de 29 anos, inferior aos 33 anos da média global.
O mesmo aconteceu em outras partes do
mundo. Na Alemanha, não houve crescimento da população pela primeira vez desde
2011, em consequência do aumento das mortes e da redução da migração. A
população encolheu na Rússia pela primeira vez em 15 anos; e, em Londres, em 31
anos.
A queda da expectativa de vida terá impacto
direto na redução do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil uma vez
que esse é um dos componentes do indicador apurado pelo Programa das Nações
Unidas para Desenvolvimento (Pnud), da Organização das Nações Unidas (ONU), ao
lado da educação e da renda (PIB per capita). Em consequência, o país também
não deve conseguir melhorar o IDH para cumprir um dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU para 2030. No
levantamento mais recente, de 2019, o Brasil estava em 84º lugar entre 189
países no ranking mundial do IDH, perdendo cinco postos em relação ao
levantamento anterior, principalmente por conta do progresso de outros países.
Tão ou mais importante será o efeito da
pandemia na taxa de dependência da população, que é a relação entre o número de
pessoas com menos de 15 anos ou mais de 65 anos - os “dependentes” -, e a
população em idade ativa (PIA), composta pelos demais, que têm de 15 a 64 anos.
Quando a população em idade ativa cresce mais do que população total, em termos
proporcionais, diz-se que o país vive um bônus demográfico, com consequências
positivas na criação de riqueza, na produção e na produtividade.
Países que aproveitaram o bônus demográfico
para produzir mais, aumentar o nível de poupança e investimento, conseguiram
melhorar a qualidade de vida da população, mostra a experiência histórica. No
Brasil, esse período começou na década de 1970. A mais baixa razão de dependência
demográfica no Brasil ocorreu entre 2015 e 2020. Foi, porém, um período
“desperdiçado”, uma vez que foi caracterizado por um mercado de trabalho fraco,
dada a recessão que marcou 2015 e 2016, e o crescimento pífio registrado nos
anos seguintes, culminando na pandemia.
Para demógrafos como José Eustáquio Diniz
Alves, o Brasil ainda poderia usufruir do bônus até pelo menos 2040, período em
que a PIA crescerá em termos absolutos, e sua relação com os “dependentes”
seguirá próxima. Mas a pandemia encurtou esse período em cinco anos (Valor 21/7). Antes da
pandemia, se estimava que a relação entre a PIA e dependentes chegaria a 67,2
em 2060, nível semelhante ao apresentado hoje pelo Japão (69), segundo dados do
Banco Mundial.
Para se aproveitar o período restante de
bônus, seria necessária a recuperação forte do emprego. Infelizmente não é isso
que se vê, com o número de trabalhadores subutilizados, somando os desocupados,
desalentados e os que gostariam de trabalhar mais, chega a 33 milhões de
pessoas. A taxa de desemprego está em níveis recordes de 14,7%; e é elevado o
percentual de trabalhadores informais.
De toda forma, a análise desses números reforça a importância do investimento na qualidade da educação para se superar a defasagem produzida pela pandemia, melhorar a capacitação dos jovens e aumentar a produtividade. O Brasil foi um dos países que suspendeu as aulas por mais tempo desde a chegada do novo coronavírus. Provavelmente já será necessário rever também as recentes mudanças feitas na previdência; e ainda avançar nas reformas eternamente pendentes.
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