Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os militares prestariam um enorme serviço à
pátria se modernizassem sua profissão e sua formação
É um equívoco político supor que os
militares, enquanto militares, são autoridade privilegiada na opinião sobre o
voto, quanto a ser impresso ou eletrônico. Esse é um assunto essencialmente
civil porque é político. E a política é de todos os cidadãos, também deles
enquanto tais.
Eles têm tanto direito de dar palpites em
assuntos políticos e eleitorais quanto eu, educador, tenho direito de dar
palpites sobre assuntos militares.
Em especial quanto à necessidade de
modernização da formação das novas gerações de oficiais para que se atualizem
quanto à sociedade e ao país a que devem servir. Pois já não é este o país
instrumentalizado pela geopolítica da dominação americana e da Guerra Fria nem
o da polarização ideológica dela decorrente, o do regime de 1964.
As novas gerações têm concepção própria de liberdade, de democracia e de esperança. Seria bom para o país levar isso em conta. Em vez da discussão ultrapassada e arcaica sobre voto impresso ou voto eletrônico, os militares prestariam um enorme serviço à pátria se modernizassem sua profissão e sua formação. E o país inteiro lhes ficaria agradecido, como já ficou em outras ocasiões.
Especialmente quando viabilizaram o
nacional-desenvolvimentismo, ao apoiar o pensamento dos civis cultos e
patrióticos, no que foi o grande momento da história econômica, social e
política do país.
Quando entra no recinto para votar, o
militar despe imaginariamente sua veste simbólica de militar e a deixa do lado
de fora do recinto eleitoral. É o que o espírito democrático e republicano
pressupõe.
Ninguém vai votar vestido de general, com
todas aquelas medalhas no peito. O militar vota como civil porque não existe
voto militar embora exista voto de militar, como existe o de professor, o de
médico, o de advogado, o de operário, o de lavrador e assim por diante.
Não há nem pode haver um partido militar,
porque militar é uma função no serviço ao país e, portanto, a todos. Mesmo que
a alienação popular vote em militares sem saber o que é um militar. Nas
eleições de 2018, esse equívoco ficou mais do que dolorosamente claro.
Para uma parte da população, farda é
sinônimo de militar e militar é sinônimo de polícia, caso em que se pode
avaliar o tamanho de nossa ignorância política, pois militar é militar, polícia
é polícia. Servidores públicos das polícias militares e das guardas civis
municipais, que não são militares, foram eleitos porque o eleitor desinformado,
que gosta de polícia, entendeu que farda e militar são uma e mesma coisa.
Do mesmo modo, nenhum eleitor tem outra
qualificação que não seja a de cidadão, uma categoria completamente civil.
Tanto quem vota quanto quem é votado.
O voto, nas democracias, não é um voto
corporativo. Nem pode ser. Porque qualquer grupo que atue politicamente como
corporação de interesses ou de visão de mundo que não seja a da sociedade
estará agindo na contramão da concepção de pátria. A pátria só o é porque é de
todos e não só de alguns.
O fato de que militares do Exército tenham
proclamado a República não fez deles os únicos patriotas do país nem os fez
mais patriotas do que qualquer um de nós.
Assim como não tem cabimento médicos se
manifestarem sobre o voto impresso, enquanto médicos, não tem o menor cabimento
que os militares se manifestem sobre a mais correta maneira de fazer um
transplante de rim ou de fígado. Nem na mesa de operação no caso de ser um
deles o paciente. É uma questão de papéis sociais, de situação social e de
circunstância.
Vimos essa inversão esdrúxula nas
ocorrências recentes relativas a um general na condição de ministro da Saúde.
Ele não era e não é do ramo. Opinou sobre assuntos que não conhecia. E isso
teve um preço social altíssimo. Ainda na ativa, deu a entender que agia como
militar, coisa que não podia nem devia. Errou como militar fora do lugar.
O presidente da República, que teima na
tese esdrúxula da honestidade do voto impresso contra o favorecimento da
corrupção pelo voto eletrônico, assim como os que o acompanham na anômala
concepção de voto, não tem dados técnicos nem científicos para demonstrar a
procedência de sua tese. Tem apenas uma opinião ridícula.
É antidemocrática e retrógrada a cultura de
palpites e palavras de ordem do atual presidente, como sua opção unilateral
pelo voto impresso. Nela, equivocadamente, ele e os bolsonaristas se acham
conservadores. Explicitamente, identificados com tudo que representa o atraso
social, político e econômico, com o retrocesso e seus contravalores. Os de um
passado fantasioso que nunca existiu, propriamente, como modelo desta
sociedade. Conservadorismo é histórica e sociologicamente outra coisa, que ele
já demonstrou não conhecer.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).
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