O Globo
O presidente Jair Bolsonaro desistiu até de
tentar fingir que governa, que trabalha. Daqui às eleições, será alguém voltado
apenas à tentativa cada vez mais desesperada de se reeleger. A live desta
quinta-feira pode ser considerada a peça inaugural de um vale-tudo cada vez
mais perigoso para permanecer no poder.
Bolsonaro montou uma “surperprodução” no
Palácio da Alvorada. Fez um rapapé para aumentar a audiência da transmissão que
faz todas as quintas-feiras abrindo, via Secom, credenciamento para a imprensa.
Apresentaria, finalmente, as “provas” da
fraude da eleição de 2014, algo que vem apontando há anos de forma leviana,
juntamente com o mentiroso “roubo” de sua própria eleição em primeiro turno.
Nos primeiros minutos, fraudes viraram
“indícios”. E Bolsonaro enfileirou ataques: ao Supremo Tribunal Federal, ao
Tribunal Superior Eleitoral, ao ministro Luís Roberto Barroso, aos senadores da
CPI.
Com o rosto transfigurado pelo pânico diante
da perda de popularidade e pela evidência de que a classe política não
embarcará em seu delírio, Bolsonaro, sem conexão nenhuma, misturou armamento da
população, Cuba, Argentina, PT, Lula, Tarcísio Freitas e outras tantas
platitudes para se fazer de vítima de um complô de quem não quer eleições
democráticas.
Ficou flagrante o uso da máquina do
Executivo em favor de uma obsessão autoritária: foi produzida às pressas uma
logomarca com um “garoto-propaganda” do tal “voto auditável”.
Na melhor técnica de um mentiroso contumaz e descompromissado com a democracia, Bolsonaro enunciou perguntas conspiratórias para as quais, é claro, não apresentou respostas. Não era esse o objetivo: era plantar alguma ponta de dúvida na cabeça dos eleitores.
O que Bolsonaro fez foi um longo e
premeditadamente passivo-agressivo discurso, com a audiência turbinada pelo uso
ostensivo da máquina pública. O ministro da Justiça, Anderson Torres, fez parte
da patacoada, ao anunciar previamente sua presença na live.
A gravidade do uso, numa cruzada contra a
Justiça e contra as eleições, do ministério que tem sob seu guarda-chuva a
Polícia Federal é comparável à da captura das Forças Armadas nessa empreitada.
E as duas coisas estão em curso numa velocidade cada vez maior, sem que Bolsonaro
seja contido.
Dedicado que está a fazer arruaça com a
democracia, Bolsonaro já nem finge que coordena o governo no auge de uma
pandemia em que já caminhamos para 600 mil mortos, ainda mergulhados numa crise
social e econômica.
Seus comandos de governo, de agora a 2022,
serão apenas para projetos que permitam melhorar suas chances eleitorais, como
o Bolsa Família turbinado.
Sua agenda já minguada de compromissos
oficiais será recheada apenas de entrevistas a rádios de todo o país, conversas
inconsequentes com apoiadores na frente do Alvorada e esses ataques à
democracia, cada vez mais desavergonhados.
Ontem ele falou em eleições vencidas “na
mão grande”, chamou eleitores de idiotas, insuflou movimentos contra Luís
Barroso, repetiu que o STF conferiu a governos e prefeituras poderes
semelhantes ao do estado de sítio. E daí? E daí nada, fica por isso mesmo, o
dito pelo não dito.
Bolsonaro falou ininterruptamente por mais
de 40 minutos, sem nem esboçar a tal prova de fraude. Mas semeando a todo tempo
teorias da conspiração sobre tudo e todos.
Convocou, ainda, um ato em 1º de agosto a
favor do tal voto impresso. Bolsonaro deturpa o sentido de palavras como
democracia e liberdade e as transforma em armas no sentido oposto.
Que faça isso usando um palácio oficial e
recursos públicos, com ministros de Estado como coadjuvantes canhestros, é
mostra de que o arcabouço institucional já está gravemente conspurcado pelo
veneno que ele inocula dia a dia.
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