terça-feira, 9 de novembro de 2021

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O mito do pote de dinheiro

Valor Econômico

Visão do pote vincula-nos à ideia de que devemos estar sempre procurando “equilibrar o orçamento”

Tempos atrás, arrisquei alguns rabiscos sobre James Buchanan, Prêmio Nobel de Economia em 1986, um dos corifeus da teoria da Escolha Racional. Na visão de Buchanan, o impacto das duas Guerras teria debilitado os laços intergeracionais e tornado o presente infinitamente mais valioso que o futuro, o consumo mais valorizado do que a frugalidade, a abstinência e a previdência.

Em 2013, essa tese recebeu uma contribuição de Niall Ferguson. No curso do debate com Paul Krugman a respeito das políticas de austeridade, o historiador de Harvard atribuiu ao homossexualismo de Keynes a valorização do presente e a depreciação do futuro. Para isso, valeu-se da frase de Maynard: “No longo prazo estaremos todos mortos”. Na opinião de Ferguson, Keynes descurava do futuro porque não precisava se preocupar com o destino dos filhos, netos e bisnetos.

Em seu livro “Tempo Comprado - A Crise Adiada do Capitalismo Democrático”, Wolfgang Streek expõe as dificuldades impostas aos governos democraticamente eleitos, hoje submetidos aos ditames da austeridade. Esse aprisionamento enseja a divulgação das banalidades negativas sobre as finanças públicas: o governo cobrador de impostos, competidor com o setor privado nos mercados de dívida, causador da inflação na medida em que financia o seu déficit com emissão monetária.

Nas últimas semanas esquentou a refrega sobre a relação dívida/PIB. Na visão dos catastrofistas, o risco fiscal está associado a uma trajetória “insustentável” da dívida pública. Insustentável, porque essa vileza vai mortificar os mais jovens e os que ainda não vieram à luz com o aumento da carga de impostos ou, na pior das hipóteses, com um calote devastador na riqueza financeira que frequenta os balanços de bancos, fundos, gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão e do dinheirinho. Ecoa a pergunta: quem vai pagar a dívida?

Em sua trajetória secular, o capitalismo abriu espaço para o surgimento e desenvolvimento de instituições encarregadas de administrar a moeda e os estoques direitos - títulos de dívida e ações - que nascem de seu incessante movimento de criação e apropriação do valor.

No afã de se apropriar da riqueza, as criaturas do mercado estão submetidas à soberania monetária do Estado. O Estado é o senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos de atender à demanda de crédito das gentes privadas. Esse sistema complexo, em sua evolução, engendrou essa forma de criar dinheiro para dar início ao jogo do mercado. Os bancos apresentam-se como os agentes particulares do senhor da riqueza universal. Universal, porque a forma inescapável que deve denominar e mediar todas as negociações, transações e, sobretudo, marcar o valor da riqueza registrada nos balanços.

Os títulos de riqueza são emitidos primariamente pelas instituições financeiras bancárias e não bancárias e negociados pelas mesmas senhoras em mercados ditos secundários, em que se formam os preços e as taxas de remuneração dos papéis. Não só as mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas também a situação patrimonial - devedora ou credora das empresas, bancos e demais instituições - deve estar registrada nos balanços. Os agentes privados do senhor da moeda estão permanentemente obrigados a manejar os riscos de crédito e de liquidez que afetam seu patrimônio líquido, a relação crucial entre ativos e passivos.

Os estudos sobre as relações entre crescimento da dívida privada e da dívida pública ao longo dos ciclos de expansão-contração das economias capitalistas mostram o que deveria ser óbvio, mesmo para um principiante nas coisas da economia monetária: nas expansões, o otimismo faz prevalecer o crescimento do endividamento privado, nas contrações eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam as desconfianças dos mercados, a tigrada corre para os títulos públicos, avaliados como ativos seguros de última instância.

Em seu livro mais recente, In “Defense of Public Debt”, Barry Eichengreen recorre a Adam Smith para lembrar que ele estava ciente dos aspectos positivos da dívida pública. Smith reconheceu que os governos também tomam emprestado para construir estradas, canais e pontes. Esses investimentos podem aumentar a extensão do mercado a ponto de gerar receitas suficientes para o Estado pagar seus credores Além disso, Smith entendeu que os títulos da dívida do governo poderiam ser revendidos no mercado secundário para outros investidores, garantindo que eles permanecessem em mãos privadas. “A segurança que [o governo] concede ao credor original é transferível para qualquer outro credor”, e, [apoiado] na confiança universal da justiça do Estado, o credor geralmente vende no mercado por mais do que foi originalmente pago por ele”.

A transferência de títulos da dívida pública, dos quais Smith falou, por sua vez conferiu outras vantagens. Comerciantes e fabricantes poderiam buscar investimentos produtivos quando estes se apresentaram, apesar de terem emprestado anteriormente ao Estado. Os poupadores, buscando um repositório seguro para seus fundos, poderiam adquirir essa segurança sob a forma de títulos da dívida pública. Não apenas a poupança e o investimento adicionais, mas da dívida pública resultariam também o aprofundamento e o desenvolvimento dos mercados financeiros. Esta visão positiva é subestimada, talvez porque é menos sensacional do que os avisos apocalípticos.

O antropólogo Jack Mosse escreveu em seu recentíssimo livro “Pound and Fury”: “Há implicações que decorrem da visão da economia como um "pote de dinheiro". Essa visão, diz Mosse, “deforma as estruturas institucionais que moldam o funcionamento da sociedade; demoniza ou elogia indivíduos e grupos que são vistos como pagando ou tirando grana do pote nacional. É também uma visão que limita a imaginação política e econômica, vinculando-nos à ideia de que estamos sempre restritos pela quantidade de dinheiro no pote, e que devemos estar sempre procurando ‘equilibrar o orçamento’. Além disso, não concorda com a realidade de como funciona nossa economia. O primeiro ponto a fazer é que os governos, assim como os bancos privados, criam dinheiro do nada. A ideia de que simplesmente não há dinheiro suficiente no pote não faz sentido”. É um mito.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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