Valor Econômico
Visão do pote vincula-nos à ideia de que
devemos estar sempre procurando “equilibrar o orçamento”
Tempos atrás, arrisquei alguns rabiscos
sobre James Buchanan, Prêmio Nobel de Economia em 1986, um dos corifeus da
teoria da Escolha Racional. Na visão de Buchanan, o impacto das duas Guerras
teria debilitado os laços intergeracionais e tornado o presente infinitamente
mais valioso que o futuro, o consumo mais valorizado do que a frugalidade, a
abstinência e a previdência.
Em 2013, essa tese recebeu uma contribuição
de Niall Ferguson. No curso do debate com Paul Krugman a respeito das políticas
de austeridade, o historiador de Harvard atribuiu ao homossexualismo de Keynes
a valorização do presente e a depreciação do futuro. Para isso, valeu-se da
frase de Maynard: “No longo prazo estaremos todos mortos”. Na opinião de
Ferguson, Keynes descurava do futuro porque não precisava se preocupar com o
destino dos filhos, netos e bisnetos.
Em seu livro “Tempo Comprado - A Crise Adiada do Capitalismo Democrático”, Wolfgang Streek expõe as dificuldades impostas aos governos democraticamente eleitos, hoje submetidos aos ditames da austeridade. Esse aprisionamento enseja a divulgação das banalidades negativas sobre as finanças públicas: o governo cobrador de impostos, competidor com o setor privado nos mercados de dívida, causador da inflação na medida em que financia o seu déficit com emissão monetária.
Nas últimas semanas esquentou a refrega
sobre a relação dívida/PIB. Na visão dos catastrofistas, o risco fiscal está
associado a uma trajetória “insustentável” da dívida pública. Insustentável,
porque essa vileza vai mortificar os mais jovens e os que ainda não vieram à
luz com o aumento da carga de impostos ou, na pior das hipóteses, com um calote
devastador na riqueza financeira que frequenta os balanços de bancos, fundos,
gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão e do dinheirinho. Ecoa a
pergunta: quem vai pagar a dívida?
Em sua trajetória secular, o capitalismo
abriu espaço para o surgimento e desenvolvimento de instituições encarregadas
de administrar a moeda e os estoques direitos - títulos de dívida e ações - que
nascem de seu incessante movimento de criação e apropriação do valor.
No afã de se apropriar da riqueza, as
criaturas do mercado estão submetidas à soberania monetária do Estado. O Estado
é o senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco
Central, são incumbidos de atender à demanda de crédito das gentes privadas.
Esse sistema complexo, em sua evolução, engendrou essa forma de criar dinheiro
para dar início ao jogo do mercado. Os bancos apresentam-se como os agentes
particulares do senhor da riqueza universal. Universal, porque a forma
inescapável que deve denominar e mediar todas as negociações, transações e,
sobretudo, marcar o valor da riqueza registrada nos balanços.
Os títulos de riqueza são emitidos
primariamente pelas instituições financeiras bancárias e não bancárias e
negociados pelas mesmas senhoras em mercados ditos secundários, em que se
formam os preços e as taxas de remuneração dos papéis. Não só as mercadorias
têm de receber o carimbo monetário, mas também a situação patrimonial -
devedora ou credora das empresas, bancos e demais instituições - deve estar
registrada nos balanços. Os agentes privados do senhor da moeda estão
permanentemente obrigados a manejar os riscos de crédito e de liquidez que
afetam seu patrimônio líquido, a relação crucial entre ativos e passivos.
Os estudos sobre as relações entre
crescimento da dívida privada e da dívida pública ao longo dos ciclos de
expansão-contração das economias capitalistas mostram o que deveria ser óbvio,
mesmo para um principiante nas coisas da economia monetária: nas expansões, o
otimismo faz prevalecer o crescimento do endividamento privado, nas contrações
eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam as desconfianças dos
mercados, a tigrada corre para os títulos públicos, avaliados como ativos
seguros de última instância.
Em seu livro mais recente, In “Defense of
Public Debt”, Barry Eichengreen recorre a Adam Smith para lembrar que ele
estava ciente dos aspectos positivos da dívida pública. Smith reconheceu que os
governos também tomam emprestado para construir estradas, canais e pontes.
Esses investimentos podem aumentar a extensão do mercado a ponto de gerar
receitas suficientes para o Estado pagar seus credores Além disso, Smith
entendeu que os títulos da dívida do governo poderiam ser revendidos no mercado
secundário para outros investidores, garantindo que eles permanecessem em mãos
privadas. “A segurança que [o governo] concede ao credor original é
transferível para qualquer outro credor”, e, [apoiado] na confiança universal
da justiça do Estado, o credor geralmente vende no mercado por mais do que foi
originalmente pago por ele”.
A transferência de títulos da dívida
pública, dos quais Smith falou, por sua vez conferiu outras vantagens.
Comerciantes e fabricantes poderiam buscar investimentos produtivos quando
estes se apresentaram, apesar de terem emprestado anteriormente ao Estado. Os
poupadores, buscando um repositório seguro para seus fundos, poderiam adquirir
essa segurança sob a forma de títulos da dívida pública. Não apenas a poupança
e o investimento adicionais, mas da dívida pública resultariam também o
aprofundamento e o desenvolvimento dos mercados financeiros. Esta visão
positiva é subestimada, talvez porque é menos sensacional do que os avisos
apocalípticos.
O antropólogo Jack Mosse escreveu em seu
recentíssimo livro “Pound and Fury”: “Há implicações que decorrem da visão da
economia como um "pote de dinheiro". Essa visão, diz Mosse, “deforma
as estruturas institucionais que moldam o funcionamento da sociedade; demoniza
ou elogia indivíduos e grupos que são vistos como pagando ou tirando grana do
pote nacional. É também uma visão que limita a imaginação política e econômica,
vinculando-nos à ideia de que estamos sempre restritos pela quantidade de
dinheiro no pote, e que devemos estar sempre procurando ‘equilibrar o
orçamento’. Além disso, não concorda com a realidade de como funciona nossa
economia. O primeiro ponto a fazer é que os governos, assim como os bancos
privados, criam dinheiro do nada. A ideia de que simplesmente não há dinheiro
suficiente no pote não faz sentido”. É um mito.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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