terça-feira, 9 de novembro de 2021

Vagner Gomes de Souza* - Os Anos da Pandemia e outros Contos sobre o Homem Cordial

Para o John Lennon que trabalha, estuda e mora na Baixada Fluminense.

As primeiras produções ficcionais brasileiras dos anos da pandemia da COVID 19 começam a aparecer no mercado editorial muito impactado pela queda da renda do brasileiro sob a pressão de uma alta inflacionária. Os títulos são lançados aos poucos em “conta gotas” e esperemos que seja uma oportunidade para a reflexão ao nível das novidades na música. Por falar em música, foi a compositor e cantor Chico Buarque que se aventurou ao universo dos contos no lançamento de Anos de Chumbo e outros contos (Editora Companhia das Letras).

Esse é a segunda obra literária do autor da “A Banda” (1966) no atual governo. Em 2019, o romance Essa Gente foi uma busca pela interpretação dos descaminhos das camadas médias urbanas diante da política com seu ressentimento(1). Nessa coletânea de contos, como se fosse um laboratório do cotidiano, o leitor é convidado mais uma vez a ler ou reler Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda para reinserir o universo weberiano na interpretação de seus oito textos escritos com uma leveza como se fosse uma pura composição musical.

Os acidentes e a morte estão sob a espreita desses “Anos de Chumbo” como sugestão para os tempos de uma Pandemia que ainda não passou apesar de “Vai Passar”. O significado dessa coletânea é importante para que se cobre mais conteúdo não apenas entre os intelectuais, mas também entre os atores políticos que ficaram reféns dos resultados eleitorais sem que apresentem conteúdo programático diante do desafio de reconstrução do Brasil.

O primeiro conto é “Tio”. E a passagem inicial de “O Homem Cordial” emerge em nossa memória. Eis que lemos “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. (...)” Como se fosse o espelho convexo desse ensaio do sociólogo de Cobra de Vidro, o conto de abertura de Chico Buarque nos incomoda com as possibilidades não reveladas do misterioso familiar circular pela cidade com muito dinheiro sem sabermos sua ocupação na sociedade em que há os personagens que usam máscara, pois haveria aqueles que se negam a usá-las. De onde surgiriam os filhos degenerados?

Em seguida, em minha opinião, o conto mais divertido é “O Passaporte” que faz uma abertura interpretativa para a coletânea desses contos. A repulsa a solução revanchista seria um “nó” naqueles que consideram que a reação deve ser proporcional ao nível do desagravo. Mais uma vez, recorreremos ao ensaio de 1936 aonde há essa passagem no capítulo “Fronteiras da Europa”:

“A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem. Os mandamentos e as ordenações que elaboraram esses eruditos são, em verdade, criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contrárias a ele. Nossa anarquia, nossa incapacidade de organização sólida, não representam, a seu ver, mais do que uma ausência de única ordem que lhes parece necessária e eficaz. Se a considerarmos bem, a hierarquia que exaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio.” (2)

As movimentações da sociedade brasileira em seu doentio desejo pela “revanche” que sempre estaria a esgarçar as possibilidades do diálogo. As condutas doentias e infantilizadas de uma manifestação de opinião por ações que atropelaram o sentimento da busca de uma Nação. A loucura ganha um nome em “Cida” que vive numa praça em homenagem a Antônio Callado. O que haveria de Barroco e trama policial ao estilo de A Madona de Cedro (1957) em nossa atualidade?  Esse conto veio na sequência do universo do anomia da tradição da família brasileira se fazer sentir na leitura de “Os Primos de Campos”. Onde estariam essa gente de bem? O leitor pode se deixar levar pelo universo da fantasia com a presença de Pablo Neruda, Borges, Ava Gardner e outros numa Copacabana, que dá título ao conto, para não se permitir ao desencanto com a realidade. Há respingos da sátira dos elogios da loucura presente na obra de Erasmo de Roterdão nesses contos, o que anunciariam uma percepção antropológica abrindo espaço para uma individualização em sociedade em constante Reforma Protestante.

Os possíveis desfechos sombrios para essa sociedade em fermentação seriam anunciados nos três últimos contos. Ao se ler “Para Clarice Lispector, com candura” no título, poderíamos pensar num conto como uma balada romântica de fundo musical, porém tudo a candura aprisionou um jovem ao passado como se fosse um alerta a muitos jovens já envelhecidos ainda mais na pandemia. Em seguida, poderíamos lembrar um traço de Alfred Hitchcock no conto “O Sítio” com todos os elementos que o suspense permite como tem sido os dias da COVID19. O tempo fica em suspenso na descrição dos acontecimentos. O narrador deixa de ser inquilino e nem bem sabe no que virou se é que vivo ainda estaria numa herança rural. Em seguida, “Anos de Chumbo” é o coroamento desse universo de possibilidade sombria na ausência da candura que se inspiraria nas nossas origens. O recurso a poliomielite, uma doença viral que hoje se pode evitar com a vacinação, é um coroamento dessa ficção.

* Mestre em Ciências Sociais (CPDA-UFRRJ).

(1) Leiam nossa resenha que publicamos em VOTO POSITIVO nesse link https://votopositivo-cg.blogspot.com/2019/11/serie-estudos-resenha-do-livro-essa.html

(2) Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1991. P. 5.

 

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