terça-feira, 9 de novembro de 2021

Luiz Schymura* - Os riscos da PEC dos Precatórios

Valor Econômico

Infelizmente, ao analisar em mais detalhes o desígnio da folga fiscal, o que se vê não é nada animador

As alterações na regra do teto de gastos vêm sendo muito mal recebidas por grande parte dos formadores de opinião. Para complicar, as mudanças ocorrem em meio a um cenário internacional desfavorável, repleto de incertezas, marcado pela escassez de energia em diversos países e inúmeros gargalos em cadeias produtivas globais. Diante desse quadro, o que dizer da política fiscal atual?

Hoje, a PEC dos Precatórios simboliza a rota da política fiscal do país. Por isso, é fundamental entender as nuances por detrás da proposta do texto constitucional. A intenção é abrir uma “licença para gastar” em 2022. Em busca disso, a PEC institui duas medidas bastante controversas. Primeiramente, o estabelecimento de um limite para o pagamento de precatórios a serem quitados em 2022. Nesse caso, a folga surge da postergação de parte do desembolso. Em segundo lugar, a modificação no método de correção do valor do teto de gastos, o qual, devido à nova fórmula de cálculo, ficará mais elevado. No fim das contas, computando tudo, a PEC gerará um espaço fiscal adicional da ordem de R$ 90 bilhões no Orçamento de 2022.

Nesse contexto, resta saber o que representa a aprovação da PEC dos Precatórios, não apenas nas contas públicas, mas também no arranjo institucional do país.

De início, é importante examinar em que medida a liberação de mais dispêndios em 2022 afeta os indicadores fiscais. Em artigo publicado no Blog do Ibre, meu colega Manoel Pires faz um trabalho meticuloso de detalhar o impacto fiscal da PEC. Segundo Pires, com as mudanças da PEC, as despesas primárias do governo federal orçadas para 2022 saltam de 17,5% do PIB para 18,1% do PIB. Ainda assim, o novo valor é um recuo em relação ao gasto federal de 18,9% do PIB de 2021. Em 2016, ano em que o teto foi aprovado, o gasto federal foi de 19,9% do PIB. Como se vê, a trajetória é de inequívoca melhora.

Ao colocar uma lupa em alguns dos gastos, é expressiva, por exemplo, a queda relativa das despesas de pessoal (incluindo inativos). Em 2022, atingirá 3,7% do PIB, menor nível desde pelo menos 2010 e bem abaixo do patamar em torno de 4,3% do PIB que prevaleceu de 2017 a 2020. Como o salário mínimo, por sua vez, vem sendo corrigido apenas pela inflação desde 2014, as despesas previdenciárias e de outros benefícios atrelados ao mínimo também estão contidas. Já o gasto discricionário, que em 2010 atingiu 3,3% do PIB, cairá para algo certamente abaixo do registrado em 2021, de 1,4% do PIB.

Assim, se, por um lado, é verdade que a alteração do teto desfigura a âncora fiscal e cria incertezas, por outro, os números acima mostram o esforço que vem sendo feito para controlar os gastos públicos.

Contudo, continua a dúvida quanto aos efeitos da distribuição de cerca de R$ 90 bilhões - injetados no Orçamento de 2022 pela PEC - nas perspectivas socioeconômicas do país.

Pelo que tudo indica, o Auxílio Brasil, programa que supostamente alavancaria o Bolsa-Família, ficará com parte expressiva dos recursos - pouco mais de R$ 50 bilhões. Outra conta grande é o aumento das despesas obrigatórias devido à elevação do índice de inflação - principalmente, os benefícios previdenciários -, algo acima de R$ 20 bilhões. Haverá também um auxílio mensal para os caminhoneiros e verba direcionada para a compra de vacinas. Por fim, a destinação mais polêmica e que, com razão, tem suscitado mais desgaste para os congressistas, é a incorporação ao Orçamento de mais de R$ 15 bilhões das chamadas emendas de relator.

Infelizmente, ao analisar em mais detalhes o desígnio da folga fiscal, o que se vê não é nada animador. Para começar, é recomendável que o Executivo exerça o papel de liderança na articulação das políticas de investimento para que os projetos sejam mais bem focados e planejados. Contudo, não é esse o caminho que está sendo trilhado. Os parlamentares têm ocupado cada vez mais o Orçamento com emendas, que no fundo são investimentos descoordenados, de motivação paroquial, e que não contribuem para acelerar o crescimento de forma sustentável. Os altos montantes aportados às emendas de relator retratam bem a situação.

No que tange às políticas sociais, o fim do auxílio emergencial e o encolhimento do mercado de trabalho, sem perspectivas de grande melhora no curto prazo, multiplicaram a população de desassistidos. Com isso, o aporte de novos recursos passou a ser imperiosa. Em resposta às dificuldades pelas quais passam esses brasileiros, está sendo proposta a criação do Auxílio Brasil - programa que substituirá o extremamente bem-sucedido Bolsa Família. No entanto, há muitas dúvidas quanto à eficácia da medida. Afinal, em face às disputas entre Executivo e Legislativo, o risco é grande de se perder na transição dos programas parte importante dos 18 anos de aprendizado do Bolsa Família.

Na verdade, já há sinais preocupantes. Agora, é considerada seriamente a criação de um bônus para os beneficiários do Auxílio Brasil que conseguirem um emprego, reforçando uma narrativa antiga e ultrapassada - que já foi desqualificada por inúmeros estudos empíricos - de que o desemprego e a pobreza são responsabilidade dos que não conseguem se colocar no mercado de trabalho.

O auxílio aos caminhoneiros, por seu turno, é uma transferência de renda que atende ao conturbado momento que vive o mercado de combustíveis. Nesse sentido, o benefício abre dois precedentes perigosos. Para começar, dá aos trabalhadores legitimidade para pleitearem a assistência financeira do Estado toda vez que o setor em que atuam esbarrar em dificuldades. Em segundo lugar, por ser concedido no contexto da PEC, fragiliza ainda mais a percepção do teto de gastos como âncora fiscal.

Em síntese, mais do que comprometer o equilíbrio fiscal estrutural, a sucessão de imbróglios relativos ao teto de gastos contribui para um retrocesso no aperfeiçoamento institucional brasileiro. O que se vê é a criação de mais obstáculos para que a economia deslanche de forma sustentável e distribua mais justamente os frutos do progresso.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre, ex-presidente da Anatel (2002-2004) 

 

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