Valor Econômico
Infelizmente, ao analisar em mais detalhes
o desígnio da folga fiscal, o que se vê não é nada animador
As alterações na regra do teto de gastos
vêm sendo muito mal recebidas por grande parte dos formadores de opinião. Para
complicar, as mudanças ocorrem em meio a um cenário internacional desfavorável,
repleto de incertezas, marcado pela escassez de energia em diversos países e
inúmeros gargalos em cadeias produtivas globais. Diante desse quadro, o que
dizer da política fiscal atual?
Hoje, a PEC dos Precatórios simboliza a
rota da política fiscal do país. Por isso, é fundamental entender as nuances
por detrás da proposta do texto constitucional. A intenção é abrir uma “licença
para gastar” em 2022. Em busca disso, a PEC institui duas medidas bastante
controversas. Primeiramente, o estabelecimento de um limite para o pagamento de
precatórios a serem quitados em 2022. Nesse caso, a folga surge da postergação
de parte do desembolso. Em segundo lugar, a modificação no método de correção
do valor do teto de gastos, o qual, devido à nova fórmula de cálculo, ficará
mais elevado. No fim das contas, computando tudo, a PEC gerará um espaço fiscal
adicional da ordem de R$ 90 bilhões no Orçamento de 2022.
Nesse contexto, resta saber o que representa a aprovação da PEC dos Precatórios, não apenas nas contas públicas, mas também no arranjo institucional do país.
De início, é importante examinar em que
medida a liberação de mais dispêndios em 2022 afeta os indicadores fiscais. Em
artigo publicado no Blog do Ibre, meu colega Manoel Pires faz um trabalho
meticuloso de detalhar o impacto fiscal da PEC. Segundo Pires, com as mudanças
da PEC, as despesas primárias do governo federal orçadas para 2022 saltam de
17,5% do PIB para 18,1% do PIB. Ainda assim, o novo valor é um recuo em relação
ao gasto federal de 18,9% do PIB de 2021. Em 2016, ano em que o teto foi
aprovado, o gasto federal foi de 19,9% do PIB. Como se vê, a trajetória é de
inequívoca melhora.
Ao colocar uma lupa em alguns dos gastos, é
expressiva, por exemplo, a queda relativa das despesas de pessoal (incluindo
inativos). Em 2022, atingirá 3,7% do PIB, menor nível desde pelo menos 2010 e
bem abaixo do patamar em torno de 4,3% do PIB que prevaleceu de 2017 a 2020. Como
o salário mínimo, por sua vez, vem sendo corrigido apenas pela inflação desde
2014, as despesas previdenciárias e de outros benefícios atrelados ao mínimo
também estão contidas. Já o gasto discricionário, que em 2010 atingiu 3,3% do
PIB, cairá para algo certamente abaixo do registrado em 2021, de 1,4% do PIB.
Assim, se, por um lado, é verdade que a
alteração do teto desfigura a âncora fiscal e cria incertezas, por outro, os
números acima mostram o esforço que vem sendo feito para controlar os gastos
públicos.
Contudo, continua a dúvida quanto aos
efeitos da distribuição de cerca de R$ 90 bilhões - injetados no Orçamento de
2022 pela PEC - nas perspectivas socioeconômicas do país.
Pelo que tudo indica, o Auxílio Brasil,
programa que supostamente alavancaria o Bolsa-Família, ficará com parte
expressiva dos recursos - pouco mais de R$ 50 bilhões. Outra conta grande é o
aumento das despesas obrigatórias devido à elevação do índice de inflação -
principalmente, os benefícios previdenciários -, algo acima de R$ 20 bilhões.
Haverá também um auxílio mensal para os caminhoneiros e verba direcionada para
a compra de vacinas. Por fim, a destinação mais polêmica e que, com razão, tem
suscitado mais desgaste para os congressistas, é a incorporação ao Orçamento de
mais de R$ 15 bilhões das chamadas emendas de relator.
Infelizmente, ao analisar em mais detalhes
o desígnio da folga fiscal, o que se vê não é nada animador. Para começar, é
recomendável que o Executivo exerça o papel de liderança na articulação das
políticas de investimento para que os projetos sejam mais bem focados e
planejados. Contudo, não é esse o caminho que está sendo trilhado. Os
parlamentares têm ocupado cada vez mais o Orçamento com emendas, que no fundo
são investimentos descoordenados, de motivação paroquial, e que não contribuem
para acelerar o crescimento de forma sustentável. Os altos montantes aportados
às emendas de relator retratam bem a situação.
No que tange às políticas sociais, o fim do
auxílio emergencial e o encolhimento do mercado de trabalho, sem perspectivas
de grande melhora no curto prazo, multiplicaram a população de desassistidos.
Com isso, o aporte de novos recursos passou a ser imperiosa. Em resposta às
dificuldades pelas quais passam esses brasileiros, está sendo proposta a criação
do Auxílio Brasil - programa que substituirá o extremamente bem-sucedido Bolsa
Família. No entanto, há muitas dúvidas quanto à eficácia da medida. Afinal, em
face às disputas entre Executivo e Legislativo, o risco é grande de se perder
na transição dos programas parte importante dos 18 anos de aprendizado do Bolsa
Família.
Na verdade, já há sinais preocupantes.
Agora, é considerada seriamente a criação de um bônus para os beneficiários do
Auxílio Brasil que conseguirem um emprego, reforçando uma narrativa antiga e
ultrapassada - que já foi desqualificada por inúmeros estudos empíricos - de
que o desemprego e a pobreza são responsabilidade dos que não conseguem se
colocar no mercado de trabalho.
O auxílio aos caminhoneiros, por seu turno,
é uma transferência de renda que atende ao conturbado momento que vive o
mercado de combustíveis. Nesse sentido, o benefício abre dois precedentes
perigosos. Para começar, dá aos trabalhadores legitimidade para pleitearem a
assistência financeira do Estado toda vez que o setor em que atuam esbarrar em
dificuldades. Em segundo lugar, por ser concedido no contexto da PEC, fragiliza
ainda mais a percepção do teto de gastos como âncora fiscal.
Em síntese, mais do que comprometer o
equilíbrio fiscal estrutural, a sucessão de imbróglios relativos ao teto de
gastos contribui para um retrocesso no aperfeiçoamento institucional
brasileiro. O que se vê é a criação de mais obstáculos para que a economia
deslanche de forma sustentável e distribua mais justamente os frutos do
progresso.
*Luiz Schymura é pesquisador
do FGV Ibre, ex-presidente da Anatel (2002-2004)
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