O Globo
A decisão da ministra Rosa Weber que
determinou a suspensão do “orçamento secreto” e a adoção de medidas de
transparência tem gerado controvérsia. Lideranças parlamentares ligadas ao
governo falam em crise com o Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão,
contudo, limita-se a dar fiel cumprimento a uma regra aprovada pelo próprio
Congresso em reformas recentes. Não pode ser interpretada como uma
interferência na autonomia do Legislativo.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014 já consagrava o caráter impositivo das emendas individuais. A emenda nº 86/2015 constitucionalizou o “princípio da execução equitativa”, reafirmado na emenda nº 100/2019. Segundo esse princípio, o governo deve observar critérios objetivos e imparciais na execução do Orçamento, e as emendas apresentadas devem ser tratadas de forma igualitária e impessoal. Portanto o próprio Congresso aprovou (nesta legislatura) norma que proíbe o uso das emendas como ferramenta de gestão de coalizão parlamentar.
Podemos discutir, no mérito, se é bom ou
ruim que, num sistema presidencialista com tantos partidos, o governo possa
lançar mão das emendas como forma de construir sua base. Mas esse debate já
ocorreu, e uma decisão clara foi tomada. Não podemos fechar os olhos: o modelo
instaurado pelo “orçamento secreto” não se coaduna com a Constituição, com
“critérios objetivos e imparciais”, com “tratamento igualitário” de
parlamentares.
Não se trata aqui de uma crítica
indiscriminada às emendas individuais ou à busca dos parlamentares por mais
recursos para os estados e regiões que representam, uma luta legítima. O modelo
urdido pelas lideranças governistas, contudo, pretende lançar esse jogo fora
dos limites constitucionais. Se o Congresso entende que precisa ter mais peso
no Orçamento, deve defender abertamente isso, aumentando o volume de recursos
que serão alocados diretamente por decisão legislativa. As emendas, porém,
devem ser empregadas de forma objetiva, impessoal e equitativa, a menos que a
Constituição seja modificada. Por que a regra que valeu para o governo do PT
não pode valer para o governo Bolsonaro, que se elegeu com uma crítica contumaz
ao “toma lá dá cá”?
A questão da transparência é outro grande
problema. Ocultar os “congressistas requerentes da despesa” produz um quadro
pior do aquele que se tinha antes de 2014. Naqueles tempos, era possível
identificar e tematizar o tratamento diferenciado conferido aos parlamentares.
Sabia-se quem estava recebendo, quanto, quando e para quê. Agora, nem isso. O
STF não pode controlar o mérito das emendas parlamentares e das alocações
orçamentárias, mas pode (e deve) fiscalizar o procedimento orçamentário. O
Congresso deve satisfação para a sociedade, mas, sem transparência, não há
controle político pelas urnas.
O “orçamento secreto” gera, ainda, dois
efeitos colaterais. Primeiro, diante da elevada rigidez orçamentária, com
despesas discricionárias abaixo de 7% do total, o abuso das emendas de relator
desorganiza os programas estruturais de políticas públicas ao disputar recursos
com eles. Num momento em que essas políticas são centrais para a rede de
proteção social e para a retomada da economia, temos de privilegiar iniciativas
que pensam de forma sistêmica o país. Segundo, com a proximidade das eleições,
o acesso aos recursos do “orçamento secreto” gera uma vantagem competitiva para
os beneficiados. Em nosso modelo eleitoral, políticos da mesma sigla acabam
competindo entre si. Por isso, a cooptação de apoio no varejo, com base nas
emendas de relator e à margem da ação de lideranças partidárias, estimula o
racha em partidos outrora disciplinados.
Se o STF referendar a cautelar, assegurará
a observância de regra duas vezes aprovada pelo Congresso, destinada a fomentar
uma política parlamentar transparente e impessoal. Ela pode ser alterada no
futuro, mas, enquanto estiver no texto da Constituição, ninguém pode acusar o
Tribunal de invadir o espaço do Legislativo.
*Deputado federal (sem partido-RJ)
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