O Estado de S. Paulo
As emendas de relator deveriam se restringir à correção de erros e omissões, com amparo na Constituição
Adam Smith, na Teoria dos sentimentos morais
(1759), escreveu que “a regra geral se forma por se descobrir, a partir da
experiência, que se aprovam ou desaprovam todas as ações de determinada
espécie, ou circunstanciadas de certa maneira”. Isto é, a prática e os valores
precedem as leis. As emendas de relatorgeral do Orçamento desvirtuam uma regra
geral fundamental: o respeito ao dinheiro público. É o patrimonialismo
redivivo.
O Poder Executivo envia ao Congresso a proposta orçamentária. As únicas hipóteses para emendas parlamentares são: a anulação de despesas e a correção de erros e omissões. Está no parágrafo 3.º do artigo 166 da Constituição: “As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: (...) II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa (...); ou III – sejam relacionadas: a) com a correção de erros ou omissões; ou b) com os dispositivos do texto do projeto de lei.”
As emendas individuais e de bancada
tornaram-se impositivas, respectivamente, em 2015 e 2019 (Emendas à
Constituição – ECS n.ºs 86 e 100). No caso das individuais, garantiu-se 1,2% da
Receita Corrente Líquida (RCL, conceito usado para medir a arrecadação) em
2017, sendo metade obrigatoriamente para a saúde. Já as emendas de bancada
estadual correspondem a 1% da RCL. As emendas individuais, conforme a EC n.º
95, de 2016, são corrigidas pela inflação acumulada em 12 meses até junho
(regra do teto).
Antes, o Executivo podia contingenciá-las.
Hoje, há uma blindagem do valor reservado já no Projeto de Lei Orçamentária
Anual (Ploa), que só pode ser reduzido na mesma proporção em que o Executivo
cortar as suas despesas discricionárias (não obrigatórias).
Desde 1989, o Congresso reestimava as
receitas calculadas pelo Executivo alegando “erro” de projeção. Isso abria
espaço para emendas ao Orçamento, depois contingenciadas parcialmente por
decreto. Ocorre que o teto de gastos reduziu a eficácia desse jogo. A
Instituição Fiscal Independente (IFI) tem mostrado, há vários anos, a contenção
das despesas discricionárias requerida para cumprir o teto. Começouse a buscar
saída para emendar o Orçamento escapando das amarras do teto. Reestimar a
receita já não serviria na presença de despesas próximas do teto.
A solução foi ampliar o escopo das emendas
de relator-geral do Orçamento, promovendo inclusive revisões para baixo em
projeções de gastos obrigatórios, como ocorreu em 2021. O papel do relator é
central; coordena as alterações no Ploa em todas as etapas. Para isso, dialoga
permanentemente com o Executivo. As emendas de relator deveriam se restringir à
correção de erros e omissões, com amparo na Constituição. Uma brecha da
Resolução do Congresso n.º 1, de 2006, tem permitido a extrapolação do texto
constitucional.
Ocorre que, desde 2019 (já ocorria antes em
menor intensidade), essas emendas do relator começaram a acolher demandas de
parlamentares e do próprio Executivo. O relator passou a emendar o Orçamento
por meio de um carimbo específico (o “RP-9”), uma forma de identificar essas
mexidas e garantir os acordos a posteriori. A pulverização e o tamanho
alcançados levaram aos alertas da imprensa, inicialmente do
Estadão, em matérias do jornalista Breno
Pires. Na IFI, publicamos dois trabalhos sobre isso no âmbito do Orçamento de
2021.
A decisão da ministra Rosa Weber, nos
últimos dias, limita o RP-9. Está correta. Não há critérios objetivos para a
gestão desses vultosos recursos e as combinações entre governo e relator-geral
estão muito distantes dos olhos da sociedade. Por que um município recebeu mais
em RP-9 do que outro? Hoje, com dados públicos, é impossível responder a
questões como essa.
O tipo de negociação aí embutida deve
merecer as atenções de todos nós. A PEC dos Precatórios, por exemplo, foi
aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados. O rombo no teto de gastos
poderá ficar entre R$ 92 bilhões e R$ 95 bilhões em 2022. Uma parte relevante
iria para o relator-geral distribuir no âmbito do Ploa. Os fatos estão aí. O
quadro é potencialmente grave.
O orçamento das emendas de relator-geral
está em torno de R$ 17 bilhões em 2021. Há gastos do Ministério do
Desenvolvimento Regional, do Fundo Nacional de Saúde, dentre outros. Para 2022,
as contas preliminares da IFI indicam emendas de relator na casa de R$ 15
bilhões, caso se aprove a PEC dos Precatórios.
Se o RP-9 passou a ser um instrumento novo
na relação entre o Executivo e o Legislativo, ele tem de ser regulamentado.
Deve haver regras para realizar tais despesas, e com transparência, ou
voltaremos à idade da pedra lascada na gestão fiscal. Alternativamente,
restrinja-se a emenda de relator.
Raymundo Faoro escreveu, em Os donos do
poder: “A comunidade política conduz (...) os negócios, como negócios privados
seus, na origem, como negócios públicos depois (...). O súdito, a sociedade, se
compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar
nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a
forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo
(...)”.
O Orçamento não pode ter donos.
*Diretor-executivo e responsável pela
implantação da IFI
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