O Globo
O Pessach —
a Páscoa judaica — representa a forma viva mais antiga de celebração coletiva
da liberdade. Há cerca de 3 mil anos, judeus espalhados pelo mundo contam a
seus descendentes sobre a amargura da escravidão no Egito e sua longa travessia
para a liberdade na Terra Prometida. Mesmo nas situações mais adversas, como em
guerras, nos campos de concentração e durante pandemias, a comunidade judaica
resistiu e cumpriu o mandamento bíblico de transmitir às crianças o testemunho
de seus antepassados. A Última Ceia de Jesus, retratada por inúmeros artistas,
revela detalhes da liturgia de Pessach,
celebrado numa Jerusalém sob domínio romano, quase como um ato de subversão.
Lembrar o passado era necessário porque a opressão se fazia novamente presente
naquela época.
De certa forma, Pessach representa a incompletude da libertação da humanidade, como uma obra em construção. Se já sabemos como não ser racistas, estamos ainda aprendendo a ser antirracistas. Como disse lindamente o rabino Nilton Bonder: “Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravagista”. Não há como deixar de lembrar para que a história não se repita conosco, mas também para que ela deixe de se repetir com outros povos. Quem foi escravizado não pode jamais ser indiferente a pessoas escravizadas. Por isso, ao final de cada Pessach, a porta da casa deve ser aberta à espera daquele que ainda está por vir, daquele para quem a festa ainda não começou. Sua simbologia me parece clara: lembrar aqueles invisíveis aos nossos olhos.
Os maiores desafios da humanidade ainda são
essencialmente éticos. A pandemia pôs uma lupa sobre essa realidade. A ciência
fez seu papel, de forma expedita e a contento. Entendemos a doença e produzimos
imunizantes eficazes em tempo recorde. A tecnologia possibilitou interações
impensáveis, permitindo que o mundo e a economia girassem, mesmo em
confinamento. Yuval Harari, em recente artigo, lembrou que a ciência tornou as
pragas da natureza, como a Covid-19, um desafio gerenciável. Por que, então, tantas
mortes e sofrimento evitáveis? Por causa de decisões políticas ruins. Não
haverá avanço civilizatório sem uma reflexão ética sobre nosso destino comum, a
partir de valores essenciais como democracia, liberdade e dignidade humana.
E por que é tão importante falar sobre
isso, neste momento? Porque o mundo atravessa uma espécie de hiato
obscurantista, em que as conquistas mais caras da civilização são postas em
xeque. Patrocinar a aversão a minorias, o ódio ao diferente, o desprezo pelos
vulneráveis apenas nos coloca em posição de aguardar pelo próximo encontro com
novos opressores, pois esse é um ciclo incurável pela pura opressão. A
democracia é tão sagrada e inegociável para o Estado de Israel como para os
cidadãos judeus brasileiros em relação ao Brasil. Ser livre só é possível, por
óbvio, onde exista um Estado Democrático de Direito. Quem desejar defender a
ditadura, o autoritarismo e a barbárie, que o faça em nome próprio, sem invocar
pertencimento comunitário. Defender a democracia, a liberdade e a dignidade
humana, para os judeus, não é uma questão de escolha. É um imperativo de sua
identidade.
Pessach é a ocasião em que os judeus celebram
sua liberdade. Mas é também um momento especial para compartilharem com a
humanidade seu legado ético, sua sabedoria milenar e, sobretudo, seu sentimento
de incompletude enquanto o mundo não for um lugar de justiça e liberdade para
todos.
*Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
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