EA Estado da Arte / O Estado de S. Paulo
“Nossos neoliberais raciocinam como
paleoliberais, saudosistas de uma ordem socioeconômica vitoriana, alheia ao
princípio moderno da economia social do mercado e aos deveres do Estado num
país em desenvolvimento”. O leitor poderia imaginar que as palavras saíram de
uma boca socialista. Em tempos bolsonaristas, de fato não falta fermento no
bolo do socialismo. O autor, contudo, é José Guilherme Merquior, grande liberal
brasileiro, em texto de 1983. Uma grande virtude do pensamento liberal
brasileiro é que suas melhores críticas são autocríticas.
Não se trata de uma novidade. Um século
antes, em 1886, Joaquim Nabuco escrevia que a agenda da abolição “substituiu a
luta das teses constitucionais sem alcance e sem horizonte” do seu Partido
Liberal “pela luta contra os poderosos privilégios de classe, contrários ao
desenvolvimento da nação”; e que, com isso, “pela primeira vez o Partido
Liberal saiu do terreno das discussões escolásticas, que só interessavam à
classe governante, para entrar no terreno das reformas sociais, que afetam as
massas”.
A disputa pelo real significado do liberalismo é tão antiga quanto a relevância política das ideias liberais. A acusação de socialismo disfarçado também. Hoje tratado por todos como legítimo representante do melhor liberalismo brasileiro, Nabuco também foi acusado de socialista. Um de seus acusadores foi Martinho Campos, correligionário do Partido Liberal, para quem a defesa da escravidão seria, em primeiro lugar, uma prova de caridade cristã, como se o senhor de escravos na verdade fizesse um grande favor aos escravizados; e, acima de tudo, uma defesa da propriedade privada, afinal “nenhum (escravo) caiu do céu”, todos haviam sido adquiridos legalmente.
Parafraseando Wilson Gomes, Martinho Campos
está para o liberalismo como Silas Malafaia para a religião cristã. No Brasil
de hoje, entre liberais autodenominados que proclamam uma primavera da
liberdade no bolsonarismo, celebram o golpe de 64 ou fazem lobby protecionista
em favor de suas próprias empresas, há muitos candidatos a Martinho Campos.
O vício mais presente na história do
liberalismo brasileiro é a tentativa de capturá-lo como um escudo de
legitimidade para embalar a defesa dos interesses privados mais fúteis. No
fundo, os neoliberais que Merquior criticava eram reencarnações do truque de
Martinho. Atores que sequestram fragmentos da retórica liberal e esvaziam seu
sentido mais substancial, geralmente para esconder uma atuação patrimonialista
de preservação dos próprios privilégios.
O escravocrata que jurava estar sendo fiel
à caridade cristã era apenas um oportunista. Sua conduta não contamina os belos
princípios do cristianismo. Esse argumento não precisa de muita elaboração
porque todos temos algum contato consciente com os melhores valores cristãos.
Entendimento que não surge de cima pra baixo, por palavras sagradas ou
mandamentos de uma inquisição, mas de forma diluída, em ordem espontânea, pelo
encontro cotidiano das pessoas com as comunidades cristãs que cultivam seus
valores.
De forma parecida, o caminho para iluminar
a contribuição liberal ao Brasil é cultivar os melhores valores liberais.
Princípios que hoje estão mal tratados entre nós, mas que também nos acompanham
há algumas gerações, do abolicionismo à focalização das políticas sociais,
passando pela reconstrução da democracia, a universalização da educação ou o
fim da hiperinflação. Nas palavras de Marcílio Marques Moreira, as fontes do
liberalismo derivam de um princípio mais alto que coloca as pessoas, e seu
desenvolvimento integral, no cerne das preocupações.
Cultivar a liberdade não é impor uma agenda monolítica, mas amar a diversidade das escolhas alheias. Não há liberalismo consistente sem pluralidade. Porque a liberdade individual é, ao mesmo tempo, indivisível e multifacetada. Liberdade é liberdade. A ênfase em sua busca varia conforme as circunstâncias. A liberdade política para o dissidente. A liberdade de expressão para o censurado. A liberdade econômica para o camelô que foge do rapa. Desde Joaquim Nabuco, a melhor virtude do liberalismo brasileiro é o compromisso de ampliar a liberdade de escolha para quem se vê acorrentado às condições de nascimento. Se é verdade que há muitos liberalismos possíveis, eu não tenho dúvidas de que por este, onde a liberdade é defendida por inteiro e para todos, vale a pena lutar.
*Mano Ferreira é jornalista e especialista em comunicação política, cofundador e diretor de comunicação do Livres. Alumni da International Academy for Leadership da Fundação Friedrich Naumann Pela Liberdade, da Alemanha, é cofundador do Students For Liberty no Brasil.
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