quarta-feira, 23 de abril de 2025

Choque comercial de Trump atinge a economia - Martin Wolf*

Valor Econômico

Não podemos nos dar ao luxo de continuar no rumo do desastre econômico e político

Ao longo das duas últimas décadas, a economia mundial tropeçou de um choque para outro: a crise financeira; a guerra comercial do primeiro mandato de Donald Trump contra a China; a covid-19; a inflação pós-pandemia; a invasão da Ucrânia pela Rússia; a guerra no Oriente Médio; e agora a guerra comercial “vamos detonar a economia mundial só por diversão” de Trump 2.0, que trouxe as tarifas de importação médias dos Estados Unidos de volta a níveis que não se viam há mais de um século, com a possibilidade de que haja mais por diante se as “tarifas recíprocas” forem impostas de novo.

Cabe ao Fundo Monetário Internacional (FMI) compreender qual é o sentido desse choque desnecessário e o que ele pode significar para a economia mundial. Em seu último relatório Perspectivas da Economia Mundial (WEO, na sigla em inglês), o FMI fez o melhor que pôde para decifrar isso. Mas isso não quer dizer que ele tenha entendido. Ninguém entende. Além das fragilidades deixadas por turbulências anteriores e da ignorância habitual sobre como nossa complexa economia mundial funciona, todos nos defrontamos com a enorme dificuldade de que não temos ideia do que Trump fará a seguir ou de como outros reagirão.

Em consequência, a maior realidade que podemos identificar, para além das tarifas proibitivas impostas pelos EUA e pela China, é a incerteza elevada. Isso, por si só, é paralisante em termos da economia. De fato, uma das muitas realidades deprimentes do governo Trump é sua incapacidade de compreender que, em uma sociedade livre, pode-se dizer que o papel mais importante do governo é reduzir a incerteza, e não fazer tudo o que puder para aumentá-la.

Uma das muitas realidades deprimentes do governo Trump é sua incapacidade de compreender que, em uma sociedade livre, pode-se dizer que o papel mais importante do governo é reduzir a incerteza, e não fazer tudo o que puder para aumentá-la

Consideremos o contexto do choque de Trump. Como Pierre-Olivier Gourinchas, conselheiro econômico do FMI, observa em seu prefácio ao WEO: “A economia mundial demonstrou uma resiliência surpreendente durante os fortes choques dos últimos quatro anos”. A inflação baixou de suas altas prolongadas. As taxas de desemprego e de vagas não ocupadas também começaram a voltar para os níveis anteriores à pandemia. O crescimento mundial voltou a ser de cerca de 3%, um porcentual abaixo do que era habitual no passado, mas pelo menos respeitável, enquanto a produção se aproximou do seu potencial. No entanto, muitas economias também continuaram abaixo das tendências anteriores à pandemia. Os EUA foram a maior exceção do lado positivo.

As coisas estavam melhorando, mas também havia fragilidades significativas. Em muitos países, a inflação ainda não está de volta à meta de maneira firme. De modo geral, os níveis de dívida pública e déficits estão elevados, em grande parte como resultado das iniciativas para mitigar choques anteriores. As taxas de juros também estão em níveis elevados. Por conseguinte, hoje é muito mais difícil usar a política fiscal ou a monetária para amortecer os golpes. Não é nenhuma surpresa que as previsões de crescimento estejam sendo rebaixadas. Também não é de surpreender que Trump esteja em guerra com Jerome Powell, do Federal Reserve. Este último está certo em resistir. Lembro-me de como os ciclos de inflação dos anos 1970 foram devastadores para a confiança. Não precisamos de repetições em nossa frágil economia mundial.

O FMI também explica como tarifas elevadas funcionam como um choque de oferta para aqueles que as impõem, o que reduz a produtividade e aumenta os custos unitários. Os que são atingidos se veem diante de um choque de demanda negativa, à medida que a demanda por exportações diminui e pressiona os preços para baixo. Segundo o WEO, “em ambos os casos, a incerteza comercial acrescenta uma camada de choque de demanda, já que a reação de empresas e famílias é adiar investimentos e gastos, e esse efeito pode ser amplificado por condições financeiras mais restritivas e maior volatilidade da taxa de câmbio”.

A “previsão de referência” do relatório do FMI se baseia em medidas anunciadas em 4 de abril e diz: “O crescimento mundial deve se enquadrar nesta opção, de estimados 3,3% em 2024 para 2,8% em 2025, antes de se recuperar para 3% em 2026. Isso está abaixo das projeções incluídas na Atualização do WEO de janeiro de 2025, em 0,5 ponto porcentual para 2025 e 0,3 ponto porcentual para 2026, com revisões para baixo no que se refere a quase todos os países”.

Essa previsão omite o impacto das mudanças ocorridas depois de 4 de abril. Em 9 de abril, por exemplo, Trump suspendeu por 90 dias as tarifas mais altas para muitos países. Ao mesmo tempo, ele aumentou as tarifas sobre produtos chineses e manteve a tarifa mínima de 10% para todos os países. A China voltou a contra-atacar. Dois dias depois, os EUA anunciaram uma isenção para muitos aparelhos eletrônicos. A China aumentou as tarifas sobre produtos americanos mais uma vez em 12 de abril. Em 14 de abril - a data limite para o WEO, segundo o próprio relatório - “a tarifa efetiva dos EUA sobre produtos chineses era de 115%, enquanto a imposta pela China aos produtos americanos era de 146%, e a tarifa efetiva dos EUA sobre o mundo como um todo era de cerca de 25%, um salto em comparação com os 3% de janeiro de 2025”.

Esta, em suma, é uma economia mundial que se defronta com enormes riscos negativos: desacoplamento brutal das superpotências; pressão tanto dos EUA como da China para que se escolha entre um dos dois; forte perda de confiança na confiabilidade e no bom senso dos EUA e, consequentemente, uma fuga em relação ao dólar; crises fiscais e financeiras; distúrbios financeiros e econômicos em países emergentes e em desenvolvimento em um mundo no qual o auxílio oficial encolhe de maneira rápida; crises econômicas e humanitárias profundas; instabilidade social e política exacerbada; e até mesmo grandes guerras.

Naturalmente, o Fundo não tem como examinar as implicações geopolíticas do possível desmembramento do mundo integrado que os próprios EUA criaram ao longo das últimas oito décadas. Mas a questão é saber se a extensão total desses riscos negativos pode ser evitada. Isso aponta para a possibilidade de que o medo do momento leve as pessoas a recuarem da beira do abismo e, assim, moldarem uma nova ordem mundial. É possível, por exemplo, que a China finalmente perceba que não pode depender da demanda mundial para impulsionar sua enorme economia. Se ela por fim mudar para uma economia movida pela demanda interna, poderá pelo menos mitigar a crise mundial. É possível também que os EUA abandonem sua nostalgia fútil por uma economia manufatureira que nunca mais retornará e, em consequência, mudem na direção de políticas comerciais mais comedidas - na verdade, mais sensatas.

Eu não estou otimista. Mas posso ter esperanças. Não podemos nos dar ao luxo de continuar no rumo do desastre econômico e político. (Tradução de Lilian Carmona)

*Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times.

 

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