Folha de S. Paulo
Sem romper com os radicais, direita dificulta
sua própria normalização republicana
Agora que Bolsonaro está
eleitoralmente moribundo, mas ainda é dono do maior patrimônio eleitoral
disponível à direita, o campo conservador enfrenta um dilema que é, ao mesmo
tempo, moral e pragmático. A sucessão no bolsonarismo se tornou um problema de
identidade, viabilidade e sobrevivência. E os caminhos que se abrem diante da
direita republicana são, todos, espinhosos.
O dilema pode ser descrito assim: a direita republicana precisa dos votos da extrema direita para se eleger, mas precisa manter distância da extrema direita para se legitimar. Tarcísio de Freitas é o exemplo mais eloquente dessa encruzilhada. Preferido dos donos do dinheiro em São Paulo e herdeiro de Bolsonaro diante da base, equilibra-se entre o desejo de parecer confiável para o sistema e o medo de ser abandonado pelo rebanho que ainda venera o mito. Quer a legitimidade, mas não pode ser lido como um ingrato e interesseiro que abandona o líder agonizante.
A direita republicana quer passar pelo funil
da história sem se contaminar com o bolsonarismo —mas não quer, nem pode,
passar sem os votos que só o bolsonarismo tem. E esse impasse não é apenas
estratégico, mas simbólico.
Aqui está o ponto: a direita é parte legítima
do arranjo republicano, assim como a esquerda. O pluralismo político que
estrutura as democracias liberais pressupõe que conservadores, liberais,
progressistas e reformistas possam coexistir, disputar entre si e alternar-se
no poder. A extrema direita não cabe no pacto democrático, mas a direita é uma
de suas colunas.
No fundo, a tarefa da direita republicana é
dupla: reconquistar a confiança das instituições e a confiança do eleitorado
moderado —sem se manter refém da extrema direita que hoje a sustenta. A
pergunta é se há alguém disposto —e capaz— de conduzir essa travessia.
É nesse impasse que surge a figura de
Tarcísio de Freitas: um experimento de direita republicana que não pode
prescindir do bolsonarismo. Tarcísio tenta projetar moderação, confiabilidade,
adesão à racionalidade tecnocrática —ao mesmo tempo em que sustenta sua
relevância como acólito servil da loucura bolsonarista. Seu sucesso político
depende de parecer civilizado à elite e fanático o suficiente à base.
Mas não é possível agradar a ambos
indefinidamente. A imagem de Tarcísio como candidato da direita
pós-bolsonarista vive encurralada entre duas exigências inconciliáveis. Se ele
se aproxima das instituições, dos valores republicanos e da racionalidade democrática,
perde apoio popular no seu campo. Se se mantém sob a sombra de Bolsonaro,
reforça a impressão de que, apesar do vocabulário mais educado, endossa todos
os absurdos do bolsonarismo. Nenhuma dessas faces convence completamente.
Além disso, enfrenta a concorrência direta de
outros postulantes que buscam votos na mesma fonte. Nikolas
Ferreira, por exemplo, fornece ao mesmo eleitorado —com outra
"vibe" e outra "speed"— uma continuidade simples do
bolsonarismo. Menos militar e mais influencer, menos tiozão e mais TikTok, ele
representa o bolsonarismo como produto de juventude: agressivo, performático,
cristão radicalizado, mas também conectado, moderno e inteligente. A
legitimidade republicana não é uma questão para Nikolas: progressista é para
ser vencido e anulado, não considerado. Seu sucesso crescente mostra que parte da
base quer menos prudência e mais guerra. Nikolas é a extrema direita orgulhosa
de ser extremista.
A verdade, por outro lado, é que, sem a
domesticação republicana da extrema direita, a democracia continuará refém da
radicalização. E essa tarefa —difícil, impopular, mas necessária— caberia
justamente à direita que deseja se salvar do abraço de urso. A direita que
pretende governar precisa de votos, é verdade. Mas precisa também de
legitimidade —e não há legitimidade democrática sem um compromisso firme com as
regras do jogo, o respeito às instituições e a aceitação da diversidade
política e humana.
A existência de uma direita confiável e
republicana deveria ser uma prioridade diante do avanço da extrema direita.
Esse dilema se torna mais grave quando a
direita institucional se junta à extrema direita para defender a anistia dos
golpistas do 8 de Janeiro. O gesto, para além de simbólico, é um tiro no pé da
tentativa de normalização republicana. Como convencer o centro político e as
instituições democráticas de que há uma direita confiável se ela se mostra
cúmplice dos que tentaram derrubar a democracia?
Como diferenciar-se dos radicais se se
oferece a eles não só o abraço, mas a impunidade?
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