Fui convidado a escrever sobre o falecimento de Francisco poucas horas depois do ocorrido. Acredito que isso tenha se dado pelo fato de ter o Estado do Vaticano como principal objeto de meus estudos, mas poderia não ser, devido a admiração existente e justificada vinda de um indivíduo sem nenhuma crença. O fato é que o mais recente Papa esteve longe, propositalmente, de exercer uma liderança somente religiosa e tampouco apenas sobre católicos pelo mundo. Seu pontificado encontrou intensa consonância com grupos historicamente rejeitados pela Igreja. Dentre suas muitas transgressões, alertou, logo em sua primeira entrevista, sobre a importância de olharmos com atenção ao inconformismo dos jovens. O argentino definiu o sonho utópico como algo bonito e necessário em tempos difíceis.
Seria exaustivo descrever os ineditismos
presentes no papado do primeiro latino-americano. No entanto, alguns deles
possuem caráter obrigatório quando falamos de política internacional. Francisco
definiu o mundo como nossa Casa Comum. O termo não foi utilizado tão somente
para expressar a fraternidade, mas, essencialmente, dando o tom do trato
cuidadoso em relação ao meio ambiente evocado pelo argentino. Essa postura
combativa frente a crise climática foi traduzida pelo discurso em cúpula do G7
e a primeira participação do Vaticano numa COP. Se há um quesito em que o Papa
estabeleceu ponto de não retorno, mais perto da isenção de resistências
internas, aí está o ambientalismo cristão.
Rígido no combate aos abusos cometidos por
membros do clero e à corrupção presente em profusão nas entranhas dessa
instituição religiosa, Franciso enfrentou atores que colaboraram na renúncia do
papado anterior. Muitas eram as divergências com Bento XVI, mas a necessidade
de colocar a casa em ordem foi aprofundada ferozmente. Religiosos acusados de
tais práticas não mais gozam do anonimato e nem mesmo do prosseguimento de suas
atividades. Foi compreendido que um dos problemas da Igreja estava em pregar um
moralismo incapaz de seguir internamente, ainda recorrente sem apoio
institucional. O ápice esteve no pedido de desculpas externado por Bergoglio em
uma de suas exortações.
A interpretação que definiu a Igreja como uma
figura feminina e mãe dos fiéis, ou filhos, trouxe uma quebra hierárquica que
aproximou povo e prelado. Também se traduziu no aumento quantitativo de
mulheres exercendo cargos de liderança religiosa e institucional. O caso de
maior repercussão é ato ainda do ano corrente, quando uma freira assumiu a
chefia do Governatorato do Vaticano. Já adoecido, o Papa saiu de sua mais
recente internação agradecendo a presença feminina em seu tratamento: “Quando
mulheres comandam, as coisas funcionam.”
Ele deu protagonismo ao diálogo
inter-religioso e à diplomacia da aproximação com páreas globais do
cristianismo. Foi durante esse período que o Pontífice passou a dialogar com a
incontornável China e realizou visitas a países apagados na prática cristã, a
exemplo do Camboja. Comprometido com a praticidade dos atos, em detrimento da
ortodoxia canônica, Francisco viajou, durante a pandemia de COVID-19, ao
Iraque. Rompendo com mais de mil anos de ausência papal na região, foi
demonstrado suporte aos perseguidos cristãos ali presentes e um habilidoso
ecumenismo ao visitar a residência do Aiatolá Ali al-Sistani, importante
liderança xiita que completou 94 anos em 2024. Casos como esses ilustraram a
retirada da Igreja de seus históricos muros.
Chegamos, então, no grande marco do
pontificado que acaba de se encerrar: o aceno afetuoso aos marginalizados. Em
visita a complexo prisional boliviano, Francisco disse que poderia ser um
daqueles encarcerados. Trazendo humanidade àqueles, propositalmente, esquecidos
pelo sistema. Os muitos discursos favoráveis ao acolhimento de imigrantes e o
apoio aberto a entes mais fracos em conflitos, como Gaza e Ucrânia, definiram o
debate no período. Ainda em 2013, o cardeal eleito escolheu Lampedusa, uma ilha
no extremo sul italiano como primeiro destino. O território é porta de entrada
de imigrantes na Europa. Na ocasião, criticou a “globalização da indiferença” e
deixou flores em homenagem àqueles que ali morreram na busca por dignidade.
Independente de qualquer crença religiosa, é próxima de um consenso a noção de que o mundo perdeu um proeminente arauto da paz. Com o bom humor sempre demonstrado por aquele que definiu seu papado como um retorno à simplicidade cristã, sorrimos ao relembrar seus feitos e desejamos um bom descanso a esse senhor de admiráveis 88 anos.
*Felipe Vidal Benvenuto Alberto é professor
do CEFET/RJ, doutorando pelo PPGCP/UNIRIO e pesquisador em diplomacia
religiosa.
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