O Globo
Ele está conduzindo uma guerra bárbara que o
Exército e a sociedade israelense rejeitam
Quando enfim a guerra terminar, e ela terminará um dia, as fronteiras de Gaza se reabrirão. Uma onda de jornalistas e ativistas entrará na Faixa. No mesmo dia, o número de imagens à nossa disposição será imenso. Que imagens veremos? Incontáveis prédios destruídos, isso é certo. Prédios reconstroem-se. Mas e as pessoas, como estarão? O relatório da Organização Mundial da Saúde divulgado no domingo aponta que 74 pessoas morreram por desnutrição aguda neste ano. Delas, mais de 63 se foram agora em julho. Um trabalho mais profundo, do IPC, prevê que até setembro haverá 470 mil pessoas com fome em nível 5. O estudo é de abril. O IPC, um painel formado por especialistas e financiado por inúmeros países, tem uma escala para medir fome. Esse nível, o 5, é o pior deles. Chamam de “catástrofe”. Mas é uma previsão, não sabemos ainda se será concretizada. Fome assim dá em corpos esqueléticos, longilíneos, as costelas saltando contra a pele, a cavidade torácica afundada, bochechas ausentes, olhos opacos flutuando sobre círculos negros no meio do rosto. Se o IPC estiver correto, essas serão as imagens de que nos lembraremos da guerra em Gaza.
Algumas guerras da História recente
produziram fome nesse nível. A Guerra de Biafra, entre 1967 e 1970; a da Somália, que teve o
pico em 2011. Entram na conta também as guerras do Sudão do Sul (com
pico da fome em 2017) e da Etiópia (pico em 2021). O que todos esses conflitos
têm em comum é o bloqueio da entrada de ajuda humanitária por parte de um dos
lados do conflito. Uma distinção, porém, não pode ser ignorada. É que Israel é uma
democracia. A única outra vez que uma democracia provocou uma fome em grande
escala foi em 1943, durante a Segunda Guerra. Os britânicos são responsáveis
diretos pela morte de 3 milhões em Bengala, hoje entre Índia e Bangladesh. E,
ainda assim, aquilo foi num contexto de incompetência e desatenção perante a
guerra.
O judaísmo criou a tradição mais humanista
das três religiões do Livro. Não pode o governo de Israel matar seres humanos
de fome. É desumano. Cruel. É antijudaico.
O governo de Benjamin
Netanyahu argumenta que, da maneira como a ONU estava
fazendo a entrega de alimentos, boa parte terminava confiscada pelo Hamas. Ia
parar no mercado paralelo, usada como instrumento de força política. Talvez.
Mas, como diz o jornalista britânico Jonathan Freedland, dane-se. Se a
alternativa é a fome de pessoas, não há escolha real. Além do que seria simples
resolver o problema. Basta botar dentro de Gaza muito mais comida do que é
necessário. Oferta e demanda. Se há oferta demais, não há demanda. Sem demanda,
o Hamas não transforma comida em instrumento de poder.
Tenho em uma de minhas estantes dois
bonequinhos, um de David Ben-Gurion e outro de Yitzhak Rabin. No mundo da
política, estão entre meus heróis pessoais. Um construiu no deserto um país
para um povo oprimido. Outro teve a coragem de negociar uma paz muito difícil.
São, ambos, exemplos de dedicação ao bem público e convicções democráticas.
Muitos na comunidade judaica na diáspora não têm tido coragem de denunciar o
horror causado pelo governo Netanyahu. Há razões, mas Netanyahu cruzou a última
linha da ética.
Há um surto de antissemitismo no Ocidente.
Mal passou do pogrom do Hamas, naquele 7 de outubro de 2023, e já havia
militantes de esquerda nas ruas pedindo o fim de Israel. À crueldade absurda do
Hamas, limitaram-se a virar o rosto para fingir que não viam. Para dizer que
era mentira. Na semana passada mesmo, o governo do Brasil deixou oficialmente a
Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, um gesto incompreensível de
tão absurdo. O que lutar contra negacionistas do genocídio nazista tem a ver
com Israel? Nada. O Planalto confunde judeus com israelenses e vira as costas
para os muitos brasileiros que, sendo judeus, nada têm a ver com as decisões
tomadas dentro do Knesset. Esse tipo de comportamento tem nome.
Os nazistas mataram 4 milhões de judeus entre
1942 e 1945. Só entre agosto e outubro de 1942 foram 1,5 milhão. Nada na
História contemporânea sequer se aproxima daquilo. Mas, se o IPC estiver
correto, quando a imprensa entrar com liberdade em Gaza registrará imagens da
tragédia produzida pelo governo Netanyahu que serão associadas ao Holocausto. O
terror que o governo Netanyahu está construindo liberará incontáveis
antissemitas da vergonha de se mostrarem como são, e as vítimas maiores serão
judeus na diáspora. Netanyahu não só foi incapaz de garantir a segurança de
judeus no 7 de Outubro, como está conduzindo uma guerra bárbara que o Exército
e a sociedade israelense rejeitam.
Lutar contra o antissemitismo, hoje, passa
por denunciar Bibi Netanyahu.
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