O Estado de S. Paulo
A ONU enfrenta uma crise sem precedentes, mas ainda não pode ser dada como vencida
Às vésperas da abertura de sua
Assembleia-Geral, a ONU enfrenta a crise mais grave desde sua criação. A
relação com os EUA nunca esteve tão desgastada. Donald Trump suspendeu a
participação americana em várias agências multilaterais, reduziu e atrasou
contribuições financeiras. A instituição, para sobreviver, recorre a medidas de
austeridade inéditas.
Trump reduziu aportes e bloqueou avanços em áreas que considera “woke” – gênero, clima, desenvolvimento sustentável. Richard Gowan, na revista Foreign Policy, observou que a estratégia não é abandonar a ONU, mas ter uma presença reduzida, contribuindo menos sem abrir mão do poder de veto no Conselho de Segurança.
Em tese, essa estratégia cria oportunidades
para outras potências. Mas, imaginar que países como China e Rússia possam
assumir o papel dos EUA seria um erro. Pequim busca cargos de liderança na ONU,
mas, como mostrou o Financial Times, a China vem quitando suas contribuições
obrigatórias com atrasos cada vez maiores, agravando a crise de liquidez.
Ao mesmo tempo, Moscou carece de recursos
para assumir a responsabilidade – e, mesmo que os tivesse, enfrentaria
limitações em razão de seu isolamento com a guerra na Ucrânia. Apesar de vários
países europeus serem contribuintes relevantes, a Europa não tem recursos para
cobrir a lacuna do recuo americano, porque está dedicando volumes crescentes ao
setor de defesa.
RETROCESSO. O Financial Times cita dados do
Pew Research Center, mostrando que, desde 2019, apenas 53 dos 193 países-membros
da ONU pagaram dentro do prazo suas contribuições anuais. O que se vê é um
reflexo do “novo normal”: o multilateralismo mais limitado, com cooperação
pontual e rivalidade entre grandes potências. As consequências são visíveis em
áreas críticas: ajuda humanitária, remédios, programas para refugiados sofreram
cortes. Para milhões de pessoas, isso significa a interrupção de um auxílio
necessário para sobreviver.
Não faltam vozes questionando a utilidade da
ONU. Mas convém lembrar dois pontos. Primeiro: a organização depende de seus
membros para ser eficaz. É de má-fé responsabilizar a ONU pelos conflitos.
Segundo: o custo da ONU sempre foi modesto – seu orçamento é inferior, por
exemplo, ao da polícia de Nova York.
Mesmo assim, nem todas as críticas dos EUA
estão erradas. A ONU está acomodada e precisa de reformas. Por exemplo, seria
necessário reduzir o número de agências, que às vezes focam em desafios
semelhantes, como agricultura, refúgio, imigração e saúde pública; combater
privilégios, comuns em burocracias complexas; e modernizar a comunicação.
MUDANÇA. Não faltam diplomatas que, em off,
dizem ver como positivo Trump estar tirando a ONU de sua zona de conforto. A
forma altamente politizada do governo americano, porém, levanta dúvidas sobre a
intenção de, como promete o novo representante dos EUA junto à ONU, “fazer as
Nações Unidas grandes de novo”, em alusão ao lema trumpista.
O maior risco é, tal como ocorreu com a Liga
das Nações, a instituição se tornar irrelevante diante da escalada das
rivalidades geopolíticas. Em última instância, o que se prepara é um sistema
internacional mais fragmentado, em que Genebra, Nairóbi e outras sedes técnicas
terão mais relevância, enquanto Nova York deixaria de ser o epicentro do
multilateralismo. No entanto, embora seja fácil ceder ao pessimismo, não se
deve esquecer que a ONU já enfrentou sérios desafios antes, da paralisia
durante a Guerra Fria ao descrédito após massacres em Ruanda e Srebrenica, nos
anos de 1990. Ela sobreviveu a todos.
Vários países pequenos e médios tendem a
assumir mais responsabilidades, no financiamento e em iniciativas diplomáticas.
Para outros, sobretudo no Sul Global, abre-se espaço de manobra. O Brasil
ventilou a possibilidade de acionar uma conferência de revisão da Carta da ONU
(Artigo 109), algo não debatido de forma séria desde a década de 1940.
Em vez de limitar-se a discursos genéricos
sobre a importância do multilateralismo, a Assembleia-Geral é uma chance de
articular ideias concretas de reforma, redução de custos, adaptação e
cooperação. A ONU enfrenta uma crise sem precedentes, mas ainda não pode ser
dada como vencida.
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