segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Em crise, ONU busca reinvenção. Por Oliver Stuenkel

O Estado de S. Paulo

A ONU enfrenta uma crise sem precedentes, mas ainda não pode ser dada como vencida

Às vésperas da abertura de sua Assembleia-Geral, a ONU enfrenta a crise mais grave desde sua criação. A relação com os EUA nunca esteve tão desgastada. Donald Trump suspendeu a participação americana em várias agências multilaterais, reduziu e atrasou contribuições financeiras. A instituição, para sobreviver, recorre a medidas de austeridade inéditas.

Trump reduziu aportes e bloqueou avanços em áreas que considera “woke” – gênero, clima, desenvolvimento sustentável. Richard Gowan, na revista Foreign Policy, observou que a estratégia não é abandonar a ONU, mas ter uma presença reduzida, contribuindo menos sem abrir mão do poder de veto no Conselho de Segurança.

Em tese, essa estratégia cria oportunidades para outras potências. Mas, imaginar que países como China e Rússia possam assumir o papel dos EUA seria um erro. Pequim busca cargos de liderança na ONU, mas, como mostrou o Financial Times, a China vem quitando suas contribuições obrigatórias com atrasos cada vez maiores, agravando a crise de liquidez.

Ao mesmo tempo, Moscou carece de recursos para assumir a responsabilidade – e, mesmo que os tivesse, enfrentaria limitações em razão de seu isolamento com a guerra na Ucrânia. Apesar de vários países europeus serem contribuintes relevantes, a Europa não tem recursos para cobrir a lacuna do recuo americano, porque está dedicando volumes crescentes ao setor de defesa.

RETROCESSO. O Financial Times cita dados do Pew Research Center, mostrando que, desde 2019, apenas 53 dos 193 países-membros da ONU pagaram dentro do prazo suas contribuições anuais. O que se vê é um reflexo do “novo normal”: o multilateralismo mais limitado, com cooperação pontual e rivalidade entre grandes potências. As consequências são visíveis em áreas críticas: ajuda humanitária, remédios, programas para refugiados sofreram cortes. Para milhões de pessoas, isso significa a interrupção de um auxílio necessário para sobreviver.

Não faltam vozes questionando a utilidade da ONU. Mas convém lembrar dois pontos. Primeiro: a organização depende de seus membros para ser eficaz. É de má-fé responsabilizar a ONU pelos conflitos. Segundo: o custo da ONU sempre foi modesto – seu orçamento é inferior, por exemplo, ao da polícia de Nova York.

Mesmo assim, nem todas as críticas dos EUA estão erradas. A ONU está acomodada e precisa de reformas. Por exemplo, seria necessário reduzir o número de agências, que às vezes focam em desafios semelhantes, como agricultura, refúgio, imigração e saúde pública; combater privilégios, comuns em burocracias complexas; e modernizar a comunicação.

MUDANÇA. Não faltam diplomatas que, em off, dizem ver como positivo Trump estar tirando a ONU de sua zona de conforto. A forma altamente politizada do governo americano, porém, levanta dúvidas sobre a intenção de, como promete o novo representante dos EUA junto à ONU, “fazer as Nações Unidas grandes de novo”, em alusão ao lema trumpista.

O maior risco é, tal como ocorreu com a Liga das Nações, a instituição se tornar irrelevante diante da escalada das rivalidades geopolíticas. Em última instância, o que se prepara é um sistema internacional mais fragmentado, em que Genebra, Nairóbi e outras sedes técnicas terão mais relevância, enquanto Nova York deixaria de ser o epicentro do multilateralismo. No entanto, embora seja fácil ceder ao pessimismo, não se deve esquecer que a ONU já enfrentou sérios desafios antes, da paralisia durante a Guerra Fria ao descrédito após massacres em Ruanda e Srebrenica, nos anos de 1990. Ela sobreviveu a todos.

Vários países pequenos e médios tendem a assumir mais responsabilidades, no financiamento e em iniciativas diplomáticas. Para outros, sobretudo no Sul Global, abre-se espaço de manobra. O Brasil ventilou a possibilidade de acionar uma conferência de revisão da Carta da ONU (Artigo 109), algo não debatido de forma séria desde a década de 1940.

Em vez de limitar-se a discursos genéricos sobre a importância do multilateralismo, a Assembleia-Geral é uma chance de articular ideias concretas de reforma, redução de custos, adaptação e cooperação. A ONU enfrenta uma crise sem precedentes, mas ainda não pode ser dada como vencida.

 

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