segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O golpe e os historiadores do futuro. Por Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S. Paulo

Não faz nenhum sentido equiparar os partícipes da turba do dia 8 de janeiro com os mentores de um golpe naquele momento já condenado

Ao ler o noticiário do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a tentativa de golpe de Estado, fica-se com a impressão de que ele teria sido abortado graças a alguns ministros do Supremo, que defenderam sozinhos a democracia. É como se fossem os únicos atores relevantes. Ademais, quase apagaram a distinção entre os coordenadores dessa tentativa e a turba que depredou a sede dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, como se fossem, por sua vez, eventos concatenados, obedecendo a uma mesma orientação, a última etapa de um processo previamente programado. Imaginem o que dirão os historiadores do futuro quando se debruçaram sobre esses fatos e avaliarem suas respectivas narrativas.

Se atentarmos para os fatos e a sua concatenação, tem-se uma outra visão. A narrativa predominante é a de que os protagonistas foram os ministros do Supremo, com destaque para o ministro Alexandre de Moraes, enquanto os militares caem sob a rubrica de golpistas, atingindo a imagem do Exército. Não se trata de reduzir o importante papel do ministro Alexandre de Moraes na defesa da democracia naquele momento de exceção. Soube manejar os instrumentos jurídicos à sua mão para defender a Constituição. Não se trata tampouco de desconhecer o papel de militares na conspiração, alguns com o grau de generais de quatro estrelas, quase todos, aliás, na reserva, com exceção de um general de brigada. Trata-se somente de ponderar a ação e a importância dos distintos atores.

A tentativa de golpe foi inviabilizada muito antes do dia 8 de janeiro, situando-se entre os meses de outubro e dezembro. Aquele dia foi somente o estertor de um golpe já abortado, com uma multidão sendo manipulada pelos perdedores, condenados à desordem pública. E o seu fracasso se deve à ação decidida do Alto Comando do Exército que soube dizer não naquele momento tão crucial. Relembrando: foram protagonistas principais os generais Tomás Paiva, hoje comandante do Exército, na época comandante militar do Sudeste, general Valério Stumpf, então comandante do Estado Maior do Exército, e general Richard, então comandante militar do Nordeste, além de outros que os apoiaram. Tinham o comando de tropa, algo que faltava para os golpistas. Foram, depois, denegridos por influencers bolsonaristas, que chegaram a ameaçar suas famílias.

Passaram por um duro período e foi graças a eles que a democracia foi preservada entre nós.

Não existe golpe sem força militar. Uma vez que esta não está à disposição dos golpistas, não há nenhuma possibilidade de sucesso. Não seria uma decisão da Suprema Corte que poderia impedir o avanço dessa tentativa. Sem o respaldo das armas, não há decisão jurídica que resista num contexto de exceção, de ruptura. Reitero: não se trata de desmerecer o papel do Supremo, meritório naquelas circunstâncias, mas de inseri-lo num cenário que o ultrapassa. Em todo caso, não corresponderia à verdade dos fatos considerar que foram os ministros do Supremo que, praticamente sozinhos, teriam defendido a democracia. Decisões jurídicas no vácuo não têm nenhuma eficácia. Assim abordada, a posição dos militares é a de defensores da democracia, e não como muitos pretendem apresentá-los, como os seus coveiros. Tanto isso é verdade que os militares não estão hoje envolvidos no julgamento de seus pares, que foram além de suas obrigações como oficiais, que deveriam ter defendido a Constituição.

Logo, não faz nenhum sentido equiparar os partícipes da turba do dia 8 de janeiro, com sua destruição de prédios públicos, estabelecendo a desordem em Brasília, com os mentores de um golpe naquele momento já condenado. Foram inocentes úteis, bagrinhos, pessoas que agiram por convicções ideológicas, não tendo armas, nenhuma força militar à sua disposição. Agiram na desordem, sem coordenação, ao sabor das circunstâncias. Devem, sim, ser condenados pela violência cometida, mas com penas proporcionais à sua participação. Não há como equipar a mulher do batom a uma autoridade que agia, com conhecimento de causa, contra a democracia e a Constituição. Foram atores secundários de um teatro que não mais existia, tendo perdido o seu roteiro apenas poucas semanas atrás. Houve um problema claro de dosimetria, baseado no apagamento dessa distinção.

Não deveria, portanto, surpreender que a questão da anistia tenha sido recolocada, pelas más e boas razões. Pelas más, por procurar isentar os golpistas de suas respectivas responsabilidades, como se nada tivessem feito, tipo uma conspiração imaginária. Pelas boas, pelo fato de que os bagrinhos tiveram uma pena desproporcional aos seus atos. Hoje, discute-se uma redução das penas para não enfrentar o fato óbvio: já deveriam ter sido soltos. Não haveria grande polêmica acerca da anistia se essa injustiça não tivesse sido cometida pelo STF. Mais vale saber recuar do que deixar uma ferida aberta. Seja pela anistia ou outro instrumento qualquer, já tarda a liberação dos que foram mera massa de manobra.

 

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