O Estado de S. Paulo
Não faz nenhum sentido equiparar os partícipes da turba do dia 8 de janeiro com os mentores de um golpe naquele momento já condenado
Ao ler o noticiário do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a tentativa de golpe de Estado, fica-se com a impressão de que ele teria sido abortado graças a alguns ministros do Supremo, que defenderam sozinhos a democracia. É como se fossem os únicos atores relevantes. Ademais, quase apagaram a distinção entre os coordenadores dessa tentativa e a turba que depredou a sede dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, como se fossem, por sua vez, eventos concatenados, obedecendo a uma mesma orientação, a última etapa de um processo previamente programado. Imaginem o que dirão os historiadores do futuro quando se debruçaram sobre esses fatos e avaliarem suas respectivas narrativas.
Se atentarmos para os fatos e a sua
concatenação, tem-se uma outra visão. A narrativa predominante é a de que os protagonistas
foram os ministros do Supremo, com destaque para o ministro Alexandre de
Moraes, enquanto os militares caem sob a rubrica de golpistas, atingindo a
imagem do Exército. Não se trata de reduzir o importante papel do ministro
Alexandre de Moraes na defesa da democracia naquele momento de exceção. Soube
manejar os instrumentos jurídicos à sua mão para defender a Constituição. Não
se trata tampouco de desconhecer o papel de militares na conspiração, alguns
com o grau de generais de quatro estrelas, quase todos, aliás, na reserva, com
exceção de um general de brigada. Trata-se somente de ponderar a ação e a
importância dos distintos atores.
A tentativa de golpe foi inviabilizada muito
antes do dia 8 de janeiro, situando-se entre os meses de outubro e dezembro.
Aquele dia foi somente o estertor de um golpe já abortado, com uma multidão
sendo manipulada pelos perdedores, condenados à desordem pública. E o seu
fracasso se deve à ação decidida do Alto Comando do Exército que soube dizer
não naquele momento tão crucial. Relembrando: foram protagonistas principais os
generais Tomás Paiva, hoje comandante do Exército, na época comandante militar
do Sudeste, general Valério Stumpf, então comandante do Estado Maior do
Exército, e general Richard, então comandante militar do Nordeste, além de
outros que os apoiaram. Tinham o comando de tropa, algo que faltava para os
golpistas. Foram, depois, denegridos por influencers bolsonaristas, que
chegaram a ameaçar suas famílias.
Passaram por um duro período e foi graças a
eles que a democracia foi preservada entre nós.
Não existe golpe sem força militar. Uma vez
que esta não está à disposição dos golpistas, não há nenhuma possibilidade de
sucesso. Não seria uma decisão da Suprema Corte que poderia impedir o avanço
dessa tentativa. Sem o respaldo das armas, não há decisão jurídica que resista
num contexto de exceção, de ruptura. Reitero: não se trata de desmerecer o
papel do Supremo, meritório naquelas circunstâncias, mas de inseri-lo num
cenário que o ultrapassa. Em todo caso, não corresponderia à verdade dos fatos
considerar que foram os ministros do Supremo que, praticamente sozinhos, teriam
defendido a democracia. Decisões jurídicas no vácuo não têm nenhuma eficácia.
Assim abordada, a posição dos militares é a de defensores da democracia, e não
como muitos pretendem apresentá-los, como os seus coveiros. Tanto isso é
verdade que os militares não estão hoje envolvidos no julgamento de seus pares,
que foram além de suas obrigações como oficiais, que deveriam ter defendido a
Constituição.
Logo, não faz nenhum sentido equiparar os
partícipes da turba do dia 8 de janeiro, com sua destruição de prédios
públicos, estabelecendo a desordem em Brasília, com os mentores de um golpe
naquele momento já condenado. Foram inocentes úteis, bagrinhos, pessoas que
agiram por convicções ideológicas, não tendo armas, nenhuma força militar à sua
disposição. Agiram na desordem, sem coordenação, ao sabor das circunstâncias.
Devem, sim, ser condenados pela violência cometida, mas com penas proporcionais
à sua participação. Não há como equipar a mulher do batom a uma autoridade que
agia, com conhecimento de causa, contra a democracia e a Constituição. Foram
atores secundários de um teatro que não mais existia, tendo perdido o seu
roteiro apenas poucas semanas atrás. Houve um problema claro de dosimetria,
baseado no apagamento dessa distinção.
Não deveria, portanto, surpreender que a
questão da anistia tenha sido recolocada, pelas más e boas razões. Pelas más,
por procurar isentar os golpistas de suas respectivas responsabilidades, como
se nada tivessem feito, tipo uma conspiração imaginária. Pelas boas, pelo fato
de que os bagrinhos tiveram uma pena desproporcional aos seus atos. Hoje,
discute-se uma redução das penas para não enfrentar o fato óbvio: já deveriam
ter sido soltos. Não haveria grande polêmica acerca da anistia se essa
injustiça não tivesse sido cometida pelo STF. Mais vale saber recuar do que
deixar uma ferida aberta. Seja pela anistia ou outro instrumento qualquer, já
tarda a liberação dos que foram mera massa de manobra.
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