segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Pensamento maniqueísta é ferramenta de uso cotidiano. Por Miguel de Almeida

O Globo

Adjetivos de rejeição se resumem sempre aos mesmos, independentemente de cidade, até de classe social: ladrão, fascista etc.

A polarização é uma arma para corações fracos. Sem ela, há o imobilismo. Qualquer pesquisa mostraria que a diversidade traz indecisão e confusão, enquanto a escolha posta entre A ou B resulta num conforto de alma. Afinal, a múltipla oferta requer algo além do sim e do não.

Você não pode esquecer: pensar cansa.

Basta dar um pulo no boteco da esquina e fazer uma pesquisa por conta própria. Observe a comida por quilo. Ela ajudou o brasileiro a ganhar peso: na dúvida, serve-se muito do tudo à frente. A antiga fórmula de feijão arroz carne e salada oferecia uma receita vencedora em equilíbrio energético. Havia a sabedoria do prato feito. Escolhiam pelo glutão, que não precisava pensar.

Com as redes sociais e a chegada ao palco de uma turba desacostumada ao debate público, o pensamento maniqueísta transformou-se na ferramenta de uso cotidiano.

— Suco de laranja ou limão?

— Laranja!

— Limão, laranja ou caju com morango?

— Humm, como é que é?

Não à toa, os algoritmos das plataformas encaminham os usuários a uma oferta de opções reduzida. Na linha do binário: contra ou a favor? A democracia plebiscitária levou o Reino Unido a pular fora da Comunidade Europeia, e deu ruim. Para decidir questões econômicas, foram manipuladas emoções e velhos preconceitos.

Daí que os economistas identificam o roubo de atenção como resultado da estratégia. Quanto maior o barulho, menor a compreensão. Diminui o interesse pela complexidade, enquanto a memória se apega a percepções provocadas por opções simplistas — e ancoradas em prejulgamentos.

A equação de domínio da atenção (nosso tempo) se resume ao que o ativista de direita Steve Bannon já exemplificou: jogar um monte de merda para o pessoal se confundir e esquecer o principal.

Fica fácil confirmar o condicionamento diante do desfile de argumentos. Tome os estereótipos pespegados por um petista e um bolsonarista nas redes. Ou mesmo no zap da família (confesse: você tem um extremista por perto). Adjetivos de rejeição se resumem sempre aos mesmos, independentemente de cidade, até de classe social: ladrão, fascista etc. Não há sofisticação de raciocínio. Ao primeiro sinal de divergência, aciona-se a arma da atenção roubada: “genocida” ou “nove-dedos”. Há algum tempo o debate político deixou de ser permeado por um conjunto de ideias para se tornar a repetição de um script. Trata-se do pensamento escravizado. Comunista, nazista…

Eu poderia lembrar que é uma estratégia vinda lá detrás, com Lênin, depois Goebbels: jogar ao público uma mentira, um slogan, e martelá-lo até ganhar aspecto algo inquestionável. Só que o exemplo histórico segue até mais distante, aos romanos, diante da encruzilhada do império perante a escolha de república ou ditadura.

O paralelo mostra apenas que o Brasil de 2025 (e de 2026, 2027 etc.) está perdido no espírito do tempo. Não é de agora. O filme de Vera Egito “A batalha da Rua Maria Antônia” rememora o conflito entre os estudantes da Faculdade de Sociologia da USP e do Mackenzie numa rua paulistana. Entre esquerda e direita, ou ainda “comunistas x fascistas”. Em 1968, o confronto resultou em morte e em espancamentos a torto e a direito. Era um microcosmo da sociedade brasileira, cindida entre apoio e rejeição ao golpe militar. Anteriormente houvera passeata em defesa do regime em várias cidades brasileiras, com milhares de protopatriotas nas ruas. Para ver que o amor do brasileiro à democracia é volúvel e adúltero... Não nasceu ontem esse perfil conservador.

Saúda-se o fato de golpistas serem condenados pela primeira vez na História da República (fruto do golpe de 1889). Na verdade, as penas revelam os tons do extremismo político brasileiro. Embora a ditadura (não falo da varguista) tenha matado centenas de adversários, e isso seja público, a reação ao julgamento de Bolsonaro & Cia. grita que seja algo injusto e autoritário. Até um ministro fecha os olhos e critica o excesso de provas. Ou de informações, dá no mesmo.

De novo, o Brasil cindido assiste a uma parcela ajoelhada pelo maniqueísmo colocar-se contra o processo democrático. Aconteceu recentemente quando se desejou virar o rosto ao golpe de 8 de Janeiro. Vivi a ditadura e sei o que é regime de exceção. A vitória da polarização não deixaria depois o país escolher ser contra ou a favor. Como ocorreu antes, não haveria liberdade de escolha.

 

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