O Globo
Adjetivos de rejeição se resumem sempre aos
mesmos, independentemente de cidade, até de classe social: ladrão, fascista
etc.
A polarização é uma arma para corações
fracos. Sem ela, há o imobilismo. Qualquer pesquisa mostraria que a diversidade
traz indecisão e confusão, enquanto a escolha posta entre A ou B resulta num
conforto de alma. Afinal, a múltipla oferta requer algo além do sim e do não.
Você não pode esquecer: pensar cansa.
Basta dar um pulo no boteco da esquina e
fazer uma pesquisa por conta própria. Observe a comida por quilo. Ela ajudou o
brasileiro a ganhar peso: na dúvida, serve-se muito do tudo à frente. A antiga
fórmula de feijão arroz carne e salada oferecia uma receita vencedora em
equilíbrio energético. Havia a sabedoria do prato feito. Escolhiam pelo glutão,
que não precisava pensar.
Com as redes sociais e a chegada ao palco de
uma turba desacostumada ao debate público, o pensamento maniqueísta
transformou-se na ferramenta de uso cotidiano.
— Suco de laranja ou limão?
— Laranja!
— Limão, laranja ou caju com morango?
— Humm, como é que é?
Não à toa, os algoritmos das plataformas
encaminham os usuários a uma oferta de opções reduzida. Na linha do binário:
contra ou a favor? A democracia plebiscitária levou o Reino Unido a pular fora
da Comunidade Europeia, e deu ruim. Para decidir questões econômicas, foram
manipuladas emoções e velhos preconceitos.
Daí que os economistas identificam o roubo de
atenção como resultado da estratégia. Quanto maior o barulho, menor a
compreensão. Diminui o interesse pela complexidade, enquanto a memória se apega
a percepções provocadas por opções simplistas — e ancoradas em prejulgamentos.
A equação de domínio da atenção (nosso tempo)
se resume ao que o ativista de direita Steve Bannon já exemplificou: jogar um
monte de merda para o pessoal se confundir e esquecer o principal.
Fica fácil confirmar o condicionamento diante
do desfile de argumentos. Tome os estereótipos pespegados por um petista e um
bolsonarista nas redes. Ou mesmo no zap da família (confesse: você tem um
extremista por perto). Adjetivos de rejeição se resumem sempre aos mesmos,
independentemente de cidade, até de classe social: ladrão, fascista etc. Não há
sofisticação de raciocínio. Ao primeiro sinal de divergência, aciona-se a arma
da atenção roubada: “genocida” ou “nove-dedos”. Há algum tempo o debate
político deixou de ser permeado por um conjunto de ideias para se tornar a
repetição de um script. Trata-se do pensamento escravizado. Comunista, nazista…
Eu poderia lembrar que é uma estratégia vinda
lá detrás, com Lênin, depois Goebbels: jogar ao público uma mentira, um slogan,
e martelá-lo até ganhar aspecto algo inquestionável. Só que o exemplo histórico
segue até mais distante, aos romanos, diante da encruzilhada do império perante
a escolha de república ou ditadura.
O paralelo mostra apenas que o Brasil de 2025
(e de 2026, 2027 etc.) está perdido no espírito do tempo. Não é de agora. O
filme de Vera Egito “A batalha da Rua Maria Antônia” rememora o conflito entre
os estudantes da Faculdade de Sociologia da USP e do Mackenzie numa rua
paulistana. Entre esquerda e direita, ou ainda “comunistas x fascistas”. Em
1968, o confronto resultou em morte e em espancamentos a torto e a direito. Era
um microcosmo da sociedade brasileira, cindida entre apoio e rejeição ao golpe
militar. Anteriormente houvera passeata em defesa do regime em várias cidades
brasileiras, com milhares de protopatriotas nas ruas. Para ver que o amor do
brasileiro à democracia é volúvel e adúltero... Não nasceu ontem esse perfil
conservador.
Saúda-se o fato de golpistas serem condenados
pela primeira vez na História da República (fruto do golpe de 1889). Na
verdade, as penas revelam os tons do extremismo político brasileiro. Embora a
ditadura (não falo da varguista) tenha matado centenas de adversários, e isso
seja público, a reação ao julgamento de Bolsonaro & Cia. grita que seja
algo injusto e autoritário. Até um ministro fecha os olhos e critica o excesso
de provas. Ou de informações, dá no mesmo.
De novo, o Brasil cindido assiste a uma
parcela ajoelhada pelo maniqueísmo colocar-se contra o processo democrático.
Aconteceu recentemente quando se desejou virar o rosto ao golpe de 8 de Janeiro.
Vivi a ditadura e sei o que é regime de exceção. A vitória da polarização não
deixaria depois o país escolher ser contra ou a favor. Como ocorreu antes, não
haveria liberdade de escolha.
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