Folha de S. Paulo
A tese que a ausência de experiência com o
autoritarismo explica a falha dos controles nos EUA não se sustenta
A pergunta fundamental é por que a defesa da democracia não foi exitosa em outros países com passado autoritário
O abuso de poder sob
Trump é contraintuitivo considerando a renda per capita, a
longa experiência democrática dos EUA e a independência histórica do Judiciário nos EUA. Levitsky argumentou recentemente que o fracasso da defesa
da democracia sob Trump deve-se fundamentalmente ao fato de que os EUA não
passaram pela experiência de governos
autoritários.
A ausência de autoritarismo no passado explicaria assim a inação —a grande
capitulação— no presente. E estendeu sua análise para o Brasil: aqui o passado autoritário tornou a sociedade vigilante.
Mas a pergunta fundamental que Levitsky não
responde é por que outros países com passado autoritário —Venezuela, Hungria,
Turquia— não lograram defender a democracia como o Brasil? A questão exige a
consideração de fatores que permitem que a memória coletiva se converta em ação
efetiva. Há três fatores potencialmente explicativos para a inação nos EUA na
literatura: a popularidade presidencial, a musculatura da sociedade civil, e a
força dos freios e contrapesos. No entanto, os dois primeiros não explicam o
contraste Brasil/EUA. Trump nunca teve popularidade a la Chávez ou Orbán, nunca foi superior a 50% e mesmo assim era mais popular
que Bolsonaro em 2022.
Levitsky sustenta que a robustez da sociedade civil americana e sua capacidade
organizacional é muito elevada. Mas, se ela é superior à brasileira, não
poderia explicar o contraste. Estaríamos observando maior resistência. Ela não
se converte, como vimos, segundo Levitsky, em ação efetiva devido às crenças de
que não há ameaça. Mas este argumento não se sustenta.
A independência e autonomia histórica do Poder Judiciário é maior sob Trump,
mas os republicanos detêm maioria na corte. O que explicaria a inação. No
Brasil, embora menor, ocorre o contrário: a maioria da corte se opunha
politicamente ao presidente.
A variável-chave é que Trump conta com maioria no Legislativo. A falta de apoio
coeso de uma base parlamentar no caso brasileiro explica o sucesso. Bolsonaro
era hiperminoritário e encontrou um ponto de veto no centrão; ela explica por
que o Legislativo falhou: Trump sobreviveu a dois impeachments. O primeiro, em 2019, a Câmara
aprovou, onde os democratas tinham maioria (233 cadeiras contra 197 dos rivais)
mas o Senado derrubou (53 contra 47, quórum de 67%). Idem no segundo: a maioria
democrata (222 vs 211) votou sim; no Senado paritário, não alcançou quórum, a
despeito de 7 republicanos votarem sim.
A conclusão de que a democracia não pode se defender se os políticos e a
sociedade civil não enxergarem uma ameaça é banal, porque muito ampla. Mas
afirmar que "assim até as democracias mais consolidadas podem morrer"
parece exagerada. Ainda é cedo para vaticinar qualquer coisa.
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