Valor Econômico
Projeto de lei propõe que Cade seja o “xerife” da atuação das big techs no Brasil
“Estamos criando uma regulação para impedir
práticas anticoncorrenciais, porque senão as big techs jantam todo mundo”,
afirmou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao podcast Três
Irmãos, na semana passada. “Elas [as big techs] pedagiam tudo. Quer usar esse
dispositivo? Pedágio. Quer usar esse outro? Tem que fazer um contrato de
exclusividade comigo. Aí, o empresário fala: ‘cara, todo meu lucro tá indo para
esses serviços de informática’.”
Ele falava sobre o Projeto de Lei 4.675/2025,
protocolado no último dia 18, que regula os aspectos econômicos da atuação das
big techs. O texto é fruto de um trabalho desenvolvido por sua equipe durante
dois anos e meio.
O PL propõe que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que regula a concorrência entre empresas no Brasil, seja o “xerife” da atuação das big techs. Será criada nele a Superintendência de Mercados Digitais, que vai monitorar de perto as plataformas que faturam mais do que R$ 5 bilhões por ano aqui ou R$ 50 bilhões globalmente. Além desse critério quantitativo, há um recorte qualitativo: o serviço precisa ter relevância sistêmica na economia.
Com isso, o governo espera manter as
condições de concorrência num tipo de negócio que é a negação disso. Por sua
natureza, as plataformas são concentradoras de mercado. Ganham mais usuários
aquelas que dispõem de mais fornecedores em sua base, e têm mais fornecedores
aquelas que têm mais clientes.
“Então, ele cobra zero de um lado para cobrar
mais do outro”, comentou à coluna Alexandre Ferreira, diretor de programa da
Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda.
O objetivo, explicou, é tentar aumentar a
concorrência. Para tanto, os serviços grandes e de impacto sistêmico serão
“designados” e, a partir daí, terão uma série de proibições e obrigações
selecionadas caso a caso. Tudo isso será feito “mediante um processo
administrativo, com transparência, com garantias que o projeto de lei traz”,
assegurou.
Esse desenho foi criticado pela Câmara
Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), entidade que, segundo ela mesma
define, representa os principais provedores de serviços digitais em operação no
Brasil. “Ao prever um rol exemplificativo de obrigações que podem ser impostas,
abre espaço para exigências indefinidas e pouco transparentes, ampliando a
incerteza jurídica”, diz em comunicado divulgado há duas semanas. A entidade
não comentou as declarações de Haddad.
A câmara também questionou a necessidade de
uma nova lei, dado que já existem mecanismos de defesa da concorrência no
Brasil.
O problema, argumentou Ferreira, é que o Cade
leva alguns anos para julgar os casos que envolvem as plataformas. Os
“remédios” impostos para coibir práticas desleais chegam tarde e, muitas vezes,
são insuficientes ou limitados, disse.
Especialista em antitruste e inovação, o
professor Marcos Lyra, da Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda.
“Esses mercados são muito dinâmicos, porque têm muita inovação, então as
plataformas conseguem desenvolver práticas que podem ser anticompetitivas muito
mais rápido que o Cade consegue investigar denúncias”, avaliou. Daí a
necessidade da nova lei.
Mas esse é um tema controverso, informou Anna
Olimpia de Moura Leite, pesquisadora associada da New School e diretora da
consultoria LCA. “É um ponto fundamental que por muito tempo gerou polêmica na
comunidade antitruste”, disse.
Outro aspecto delicado discutido nos foros
especializados, disse, é qual é o ponto de equilíbrio no qual são garantidas
condições justas de mercado sem que o custo da regulação seja alto a ponto de
desestimular a operação das plataformas e impactar de forma negativa a
inovação. Dada a complexidade da operação das plataformas, ela considera que
esse equilíbrio só é possível por meio de diálogo do governo com as empresas e
a sociedade civil.
Nesse ponto, ela ressaltou que a proposta
brasileira adota um modelo flexível, semelhante ao adotado no Reino Unido, em
contraste com a regulação adotada na Europa, bastante rígida. “É um avanço,
principalmente pela permissão de uma maior flexibilidade na hora de avaliar que
são os agentes que vão ser alvos da regulação, quanto pelas próprias regras que
vão ser impostas”, comentou.
Se esses modelos são capazes de garantir
concorrência, é cedo para saber. Lyra disse que tanto na Europa quanto no Reino
Unido os processos ainda estão no início.
Ou seja, caminhamos num terreno pouco
conhecido. “Por mais difícil que seja, eu vejo com os bons olhos o Brasil
querer estar nessa implementação de política pública, porque, se você fica
muito para trás, perdeu uma parte da história e daí está muito atrasado”,
comentou Leite.
Estão pautados para hoje no Supremo Tribunal
Federal (STF) dois processos envolvendo a relação de trabalhadores com
aplicativos.
Essa é a delicadeza do debate que terá de ser
travado no Congresso Nacional. A casa legislativa não pode viver só de
blindagens, anistias e emendas.
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