Folha de S. Paulo
Há direita republicana com regras, freios e
responsabilidade
Conservador pode escolher ordem com
garantias, não exceção iliberal
Há duas forças interessadas em borrar a
distinção entre direita republicana e extrema direita: a própria extrema
direita e setores da esquerda radical. A primeira precisa convencer o eleitor
de direita de que sua única alternativa política real é uma plataforma
iliberal. A segunda prefere reduzir tudo à sua direita a um rótulo único
—"fascismo"— porque isso simplifica o conflito, rende mobilização
moral e dispensa distinguir adversários legítimos de inimigos da democracia.
Ao país, porém, essa diferença faz falta: sem direita republicana reconhecida, cresce o espaço para aventuras iliberais.
Também importa separar movimento e
eleitorado. Bolsonarismo e trumpismo designam
um pacote de crenças e atitudes: personalismo do "homem forte",
antipluralismo, punitivismo seletivo, guerra cultural como eixo, tolerância a
teorias conspiratórias e, em casos-limite, licença para a violência.
Eleitor de Bolsonaro ou Trump é quem, em
determinada conjuntura, optou por essa candidatura por razões diversas:
rejeição à alternativa, pauta (segurança, costumes, impostos), voto econômico,
voto antipetista/antidemocrata de baixa intensidade, baixa informação.
Confundir eleitor com movimento é receita para perder a conversa com milhões de
conservadores dispostos a jogar dentro das regras.
Distinguir, entretanto, é necessário. A
direita republicana aceita o jogo democrático, a alternância e o controle
recíproco entre Poderes. Negocia duro, mas reconhece derrotas, respeita
decisões de tribunais e protege direitos de minorias impopulares —inclusive
quando discorda delas. A extrema direita relativiza essas âncoras: trata derrotas
como fraude, defende "expurgos" institucionais, confunde opositor com
inimigo, condiciona direitos e naturaliza a intimidação.
Em face da autoridade, conservadores
democratas submetem-se a autoridades impessoais —Constituição,
regras eleitorais, tribunais. Extremistas pedem obediência cega e personalista
ao líder. A direita republicana fala em lei e ordem, mas com devido processo,
proporcionalidade e padrões universais, enquanto a extrema direita abraça o
punitivismo seletivo: dureza exemplar para "inimigos", complacência
com aliados. Conservadores preferem certos valores, mas convivem com pluralismo
e não transformam costumes em ortodoxia estatal; extremistas querem impor uma
moral única por currículo, censura e punição.
Há ainda um elemento: o oposicionismo
identitário (ou programa por negação). Em vez de formular posições próprias,
como faz a direita tradicional, a extrema direita inverte automaticamente o que
identifica como bandeiras da esquerda ou dos liberais: se eles defendem
ciência, vacina, universidade, política social, laicidade e cultura, nós
exibimos rejeição performática e radical a tudo isso. Não é crítica
substantiva, é sinalização tribal. O militante nem precisa entender por que
agora é contra vacinas, urnas eletrônicas e separação de Poderes; apenas segue
o grupo e sabe que não pode conceder nada ao "outro lado".
Por que insistir nisso agora? Porque parte do
eleitorado que rejeita a esquerda tem sido enganada: gente como Tarcísio de
Freitas ou Zema vende
a ideia de que a única direita disponível é a extrema direita. Não é verdade.
Existe uma direita republicana —liberal, conservadora ou mista— que valoriza
estabilidade institucional, responsabilidade fiscal, ordem pública com
garantias, liberdade de expressão para todos e políticas sociais avaliadas por
evidência e custo-benefício. O eleitor não precisa aderir ao pacote iliberal
para afirmar preferências conservadoras ou de direita.
Quem ganha quando essa distinção volta a
valer? A democracia, que recupera competição entre alternativas legítimas sem
plebiscitos morais permanentes, sem votos que existem apenas para impedir a
vitória do outro lado. O país, que troca paralisia e "jogo duro"
destrutivo por barganha responsável e correção de rumos. E até a esquerda, que
deixa de plebiscitar a política contra espantalhos e volta a disputar projeto,
resultados e alianças no centro ampliado. Reconhecer a direita republicana como
parte do pluralismo não dilui convicções progressistas; apenas restabelece o
terreno comum onde se perde e se ganha dentro das regras.
Critique o "ismo"; convide o
eleitor. Se voltarmos a tratar conservadores como adversários legítimos —e se
eles aceitarem os limites do jogo—, isolamos a extrema direita onde deveria
estar: fora do comando das regras, sob vigilância das instituições e em minoria
política, quando a sociedade assim o decidir.
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