O Globo
Reflete o espírito do nosso tempo, em que é mais importante a filiação de grupo que o posicionamento refletido sobre temas políticos
O novo filme de Paul Thomas Anderson, “Uma
batalha após a outra”, liderou as bilheterias na última semana nos Estados Unidos e
ficou em segundo lugar no Brasil. Além do sucesso de público, vem sendo
aclamado pela crítica como obra-prima política. Seu sucesso como filme político
é sintoma da degradação do debate público, que perdeu de vista as questões
substantivas da vida social e vive mergulhado num jogo estéril e superficial de
signos e identidades.
O filme de Anderson é livremente baseado no livro “Vineland”, de Thomas Pynchon. Mantém a estrutura narrativa principal, adaptando a ambientação política ao século XXI. Narra a jornada de Bob Ferguson (Leonardo DiCaprio) e Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor) como integrantes do grupo armado de esquerda French 75 em meados dos anos 2000. O casal de militantes desenvolve uma relação romântica alimentada pela excitação sexual produzida pela aventura revolucionária, parte delírio de superioridade moral, parte arrogância armada.
Numa das ações do grupo, Perfidia humilha e
seduz o oficial responsável por um campo de detenção de imigrantes, o capitão
Lockjaw (Sean Penn), que desenvolve uma obsessão por ela. Tempos depois,
Lockjaw consegue constranger Perfidia a um encontro clandestino, cheio de jogos
sexuais de poder. Perfidia engravida e se recusa a estabelecer uma vida
familiar com Bob, preferindo seguir na jornada revolucionária. Termina presa e
se torna delatora.
Dezesseis anos depois, vemos Bob como pai
solo de Willa (Chase Infiniti) no norte da Califórnia. Ele leva uma vida
decadente, abusando de drogas e tendo na militância uma lembrança distante.
Essa vida é perturbada pelo retorno de Lockjaw. Ele quer se livrar da filha
Willa para eliminar qualquer vestígio da relação inter-racial que manteve com
Perfidia e, assim, poder se filiar a uma sociedade secreta supremacista branca.
A trama amalucada, um pouco psicodélica,
segue o espírito anárquico do livro. As ações armadas — tanto dos
revolucionários quanto das forças de segurança — são debochadamente
apresentadas como perversão sexual. E os nomes dos personagens e dos grupos
políticos são inteiramente satíricos e caçoam da seriedade e da firmeza de
propósito da militância, tanto de esquerda quanto de direita. O grupo
revolucionário French 75 leva o nome do drinque de Humphrey Bogart em
Casablanca, e o grupo secreto supremacista branco se chama “O Clube de
Aventureiros do Natal”.
O filme parece caminhar para uma denúncia
satírica do extremismo e da violência política, mas isso não é mais possível no
tempo presente. Anderson introduz na trama um simpático e imperturbável líder
comunitário pró-imigrantes, Sergio St. Carlos (Benicio del Toro), que auxilia
Bob a encontrar a filha sequestrada por Lockjaw. Na última cena do filme, vemos
Willa partindo para uma manifestação em Oakland, com a bênção do pai,
resgatando o título do filme, “Uma batalha após a outra”, como celebração da
passagem geracional de bastão da militância.
A visão positiva da militância armada de
esquerda no terço final do filme desmonta a sátira construída até então. O que
era denúncia da futilidade ideológica e da arrogância da ação armada passa a
ser celebrado como engajamento político virtuoso. Nessa reversão, a pobreza
ideológica dos personagens passa a ser positiva. Isso, porém, não gera qualquer
estranhamento ou incômodo porque reflete exatamente o espírito do nosso tempo,
em que é mais importante a filiação de grupo que o posicionamento refletido sobre
temas políticos.
Em “Uma batalha após a outra”, a sátira que
poderia revelar a inconsistência da militância armada se converte em celebração
inofensiva de sua caricatura. O gesto crítico, que, noutros tempos, poderia
expor a fragilidade das ideologias, é desarmado pela submissão ao moralismo
dominante, incapaz de desafiar as ortodoxias vigentes.
O resultado é que “Uma batalha após a outra”
se torna menos um comentário político que um reflexo fiel do presente. Em vez
de provocar estranhamento, confirma a lógica de um tempo em que a vida pública
deixou de se orientar por questões políticas substantivas para se reduzir a um
desfile de pertencimentos. Nesse sentido, a obra não apenas retrata o
esvaziamento do debate político contemporâneo — ela participa dele.
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