sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Esvaziamento da política. Por Pablo Ortellado

O Globo

Reflete o espírito do nosso tempo, em que é mais importante a filiação de grupo que o posicionamento refletido sobre temas políticos

O novo filme de Paul Thomas Anderson, “Uma batalha após a outra”, liderou as bilheterias na última semana nos Estados Unidos e ficou em segundo lugar no Brasil. Além do sucesso de público, vem sendo aclamado pela crítica como obra-prima política. Seu sucesso como filme político é sintoma da degradação do debate público, que perdeu de vista as questões substantivas da vida social e vive mergulhado num jogo estéril e superficial de signos e identidades.

O filme de Anderson é livremente baseado no livro “Vineland”, de Thomas Pynchon. Mantém a estrutura narrativa principal, adaptando a ambientação política ao século XXI. Narra a jornada de Bob Ferguson (Leonardo DiCaprio) e Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor) como integrantes do grupo armado de esquerda French 75 em meados dos anos 2000. O casal de militantes desenvolve uma relação romântica alimentada pela excitação sexual produzida pela aventura revolucionária, parte delírio de superioridade moral, parte arrogância armada.

Numa das ações do grupo, Perfidia humilha e seduz o oficial responsável por um campo de detenção de imigrantes, o capitão Lockjaw (Sean Penn), que desenvolve uma obsessão por ela. Tempos depois, Lockjaw consegue constranger Perfidia a um encontro clandestino, cheio de jogos sexuais de poder. Perfidia engravida e se recusa a estabelecer uma vida familiar com Bob, preferindo seguir na jornada revolucionária. Termina presa e se torna delatora.

Dezesseis anos depois, vemos Bob como pai solo de Willa (Chase Infiniti) no norte da Califórnia. Ele leva uma vida decadente, abusando de drogas e tendo na militância uma lembrança distante. Essa vida é perturbada pelo retorno de Lockjaw. Ele quer se livrar da filha Willa para eliminar qualquer vestígio da relação inter-racial que manteve com Perfidia e, assim, poder se filiar a uma sociedade secreta supremacista branca.

A trama amalucada, um pouco psicodélica, segue o espírito anárquico do livro. As ações armadas — tanto dos revolucionários quanto das forças de segurança — são debochadamente apresentadas como perversão sexual. E os nomes dos personagens e dos grupos políticos são inteiramente satíricos e caçoam da seriedade e da firmeza de propósito da militância, tanto de esquerda quanto de direita. O grupo revolucionário French 75 leva o nome do drinque de Humphrey Bogart em Casablanca, e o grupo secreto supremacista branco se chama “O Clube de Aventureiros do Natal”.

O filme parece caminhar para uma denúncia satírica do extremismo e da violência política, mas isso não é mais possível no tempo presente. Anderson introduz na trama um simpático e imperturbável líder comunitário pró-imigrantes, Sergio St. Carlos (Benicio del Toro), que auxilia Bob a encontrar a filha sequestrada por Lockjaw. Na última cena do filme, vemos Willa partindo para uma manifestação em Oakland, com a bênção do pai, resgatando o título do filme, “Uma batalha após a outra”, como celebração da passagem geracional de bastão da militância.

A visão positiva da militância armada de esquerda no terço final do filme desmonta a sátira construída até então. O que era denúncia da futilidade ideológica e da arrogância da ação armada passa a ser celebrado como engajamento político virtuoso. Nessa reversão, a pobreza ideológica dos personagens passa a ser positiva. Isso, porém, não gera qualquer estranhamento ou incômodo porque reflete exatamente o espírito do nosso tempo, em que é mais importante a filiação de grupo que o posicionamento refletido sobre temas políticos.

Em “Uma batalha após a outra”, a sátira que poderia revelar a inconsistência da militância armada se converte em celebração inofensiva de sua caricatura. O gesto crítico, que, noutros tempos, poderia expor a fragilidade das ideologias, é desarmado pela submissão ao moralismo dominante, incapaz de desafiar as ortodoxias vigentes.

O resultado é que “Uma batalha após a outra” se torna menos um comentário político que um reflexo fiel do presente. Em vez de provocar estranhamento, confirma a lógica de um tempo em que a vida pública deixou de se orientar por questões políticas substantivas para se reduzir a um desfile de pertencimentos. Nesse sentido, a obra não apenas retrata o esvaziamento do debate político contemporâneo — ela participa dele.

 

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