Valor Econômico
A política brasileira não é a da polarização
ideológica senão pelo fato de que os grupos políticos retrógrados resolveram
dar-se um nome e se reconheceram como de “direita”
Desde o golpe de Estado de 1964, quando a
repressão e a censura encolheram nas páginas dos jornais o noticiário sobre a
política brasileira, procuro nos informativos de entrelinhas o subjacente das
notícias. Cheguei a assinar, durante anos, o Diário do Congresso Nacional,
cujos maçudos exemplares entulharam cômodos de minha casa.
As transcrições taquigráficas do inteiro teor
dos discursos e debates de deputados e senadores revelavam um parlamento que,
apesar do golpe, continuava o mesmo.
Entre um e outro notório corrupto, a ditadura
cassara alguns dos melhores membros das duas casas, os que de fato
representavam as parcelas mais lúcidas do povo brasileiro, os que tinham
consciência crítica da realidade e dos bloqueios que a travavam para as
inovações sociais e políticas necessárias.
Os militares definiram dois elencos de políticos adversos que deveriam ter seus mandatos e seus direitos políticos cassados: os corruptos e os subversivos. Para eles, alienados da realidade brasileira, como mostraram, eram equivalentes.
Mas deram prioridade, nas cassações, aos que
definiam como subversivos, preservando os corruptos, como Adhemar de Barros,
governador de São Paulo, cujos seguidores assim cinicamente o definiam: “Ele
rouba, mas faz”. O país devia-lhe o favor de roubar em troca da competência
para disseminar obras públicas.
Os corruptos eram vulneráveis e, por isso,
dóceis. No Congresso “funcionando”, dariam a aparência à ditadura de ser,
apesar do regime, um país democrático. O golpe teria sido para “democratizar” o
Brasil.
Os discursos publicados no Diário Oficial
revelavam um Congresso fisiológico não só em relação ao Poder Executivo, como o
fora desde antes do golpe, mas também entre as diferentes facções regionais,
independentemente de orientação ideológica.
As designações de “esquerda” e “direita”
apenas se esboçavam. Deputado de esquerda votava em favor de projeto da direita
em troca do voto da direita a favor de seu projeto. Era a velha política da
troca de favores. Por trás, mesmo, existia o partido municipal oculto. Como
desde o Império, era o latifúndio e o poder local que definiam, como até hoje,
o verdadeiro poder político do Brasil.
A “briga” mesmo, da ditadura militar, não era
só contra as esquerdas. Era também contra as oligarquias rurais. O regime transformou
o latifúndio em empresa e criou o capitalismo rentista, lucrativo sem custos de
desenvolvimento social. Atualizou os grupos de interesse que são hoje o
Centrão, o dos políticos de coisa nenhuma e de si mesmos.
Na rebarba da mixórdia, a cabeça da esquerda
foi entregue à Salomé do mundo para saciar a geopolítica do Império.
E esquerda era sobretudo o
nacional-desenvolvimento que abrangia a própria burguesia modernizadora e
industrialista, que não sabia que era de esquerda nem sabia que era nacionalista.
Nem mesmo que era burguesia. Eram empresários.
Tive clareza sobre isso, tempos depois do
golpe, numa pesquisa nacional sobre a formação dos grupos econômicos
multibilionários, da Universidade do Brasil. Fui com um colega entrevistar Luís
Dumont Villares.
Ele nos contou que, em conversas com
lideranças do seu operariado, que o queriam nacionalista, mostrou-lhes que a
tese de um desenvolvimento capitalista nacional e autônomo era economicamente
irracional.
Por “apenas” 1% do faturamento de sua empresa
poderia ter equipamentos e assistência técnica permanente da Siemens. Muito
menos do que os investimentos necessários para a produção própria do saber e
das técnicas de que carecia.
A maioria dos marxistas daqui não tinha lido
o que quer que fosse da obra de Karl Marx. Quando muito lera precários manuais
de vulgarização do suposto pensamento de Marx e Engels, um capitalista da
indústria têxtil de Manchester, na Inglaterra, financiador da sobrevivência
material da família de Karl Marx.
Além do que, na época do golpe, as chamadas
esquerdas já estavam fragmentadas em vários grupos ideológicos, que na ditadura
chegariam a mais de duas dezenas.
Obviamente, muita coisa mudou desde então. A
política brasileira não é a da polarização ideológica senão pelo fato de que os
grupos políticos retrógrados resolveram dar-se um nome e se reconheceram como
de “direita”. Em boa parte continuaram sendo os capiaus do radicalismo de
extremo centro, cuja mais tradicional expressão é o Centrão. Fisiológicos,
gostam mesmo é de poder, que os faz sócios políticos e econômicos do Estado. O
resto, sob a alcunha de bolsonaristas, é apenas o resto, escorado em outros
restos como os da bancada da Bíblia e os da bala. O Brasil tem ido em frente
retornando para trás. Só que, desta vez, o afã de democracia bloqueou o
caminho.
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