Correio Braziliense
“O encontro na Malásia, se
confirmado, pode se tornar o primeiro passo para superar a pior crise bilateral
em décadas. O risco está no choque de personalidades e agendas ideológicas
O possível encontro entre o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante a
cúpula da Asean, em Kuala Lumpur, a partir de 26 de outubro, vem sendo
preparado em meio a gestos diplomáticos calculados, mas carrega
imprevisibilidade semelhante ao improvisado abraço entre ambos na
Assembleia-Geral da ONU.
O Brasil participará como convidado, e a
expectativa é de que Trump confirme presença. A reunião pode abrir caminhos
para uma acomodação no momento mais tenso das relações bilaterais desde o
início do governo Lula, mas dificilmente resultará num acordo, porque os
interesses contrariados são profundos e complexos.
Na semana passada, o vice-presidente Geraldo Alckmin conversou por telefone com o secretário de Comércio dos EUA, Howard Lutnick, enfatizando que a preferência do Brasil é pelo diálogo, apesar do “tarifaço” de 50% imposto unilateralmente por Washington. Também a Camex adiou em 30 dias a decisão sobre retaliações, sinalizando disposição de negociar. O chanceler Mauro Vieira, ao declarar que o Brasil “vai aplaudir” o plano de paz de Trump para Gaza, ofereceu gesto simbólico de deferência.
Essa questão de Gaza é um fio desencapado nas
relações do Brasil com Israel, em razão da firme posição brasileira de que
estaria havendo um genocídio de palestinos, inclusive perante tribunais e
organismos internacionais. Mas o apoio à proposta de paz dos EUA representa uma
mudança de abordagem e, indiscutivelmente, agrada Trump.
Entretanto, o contencioso comercial fala mais
alto. Na conversa com Alckmin, Lutnick deixou claro que Brasil, Índia e Suíça
continuam no radar das correções impostas por Trump. Em entrevista, disse que
esses países precisam “jogar segundo as regras do presidente dos EUA”, ou seja,
abrir mercados e abandonar práticas vistas como nocivas ao comércio
norte-americano. Apesar do tom duro, afirmou acreditar numa “resolução”, ou
seja, admitiu que há um diálogo em curso e esse é o primeiro passo para
qualquer acordo. Antes da Assembleia da ONU não existia essa possibilidade.
O problema principal, porém, continua sendo a
imprevisibilidade de Trump, que oscila entre gestos afáveis e imposições
ríspidas. O segundo é a própria postura de Lula, que pretende negociar de cabeça
em pé e não é de levar desaforo para casa. O presidente brasileiro às vezes
exagera na busca de mais protagonismo internacional — como quando sugeriu
mediação na guerra da Ucrânia — e seu assessor especial, Celso Amorim, tem
claras posições antiamericanas, o que tensiona as relações e atrapalha as
negociações do Itamaraty.
Interesses estratégicos
Temas delicados, como regulação digital e
julgamento de Jair Bolsonaro, precisarão ser enfrentados com concessões de
ambas as partes. Nem Trump deixará de representar os interesses das big techs
americanas, nem Lula vai aceitar interferência no Judiciário brasileiro.
Apesar das divergências nos quesitos
democracia, clima e regulação digital, é possível avanços estratégicos na área
empresarial. Há campos férteis para isso. O Brasil ainda tem uma economia muito
fechada, o peso relativo do comércio com os EUA é pequeno em relação ao PIB e,
por isso, uma maior abertura comercial pode beneficiar os consumidores
brasileiros.
Na tecnologia e na mineração, projetos
conjuntos de exploração e refino de terras-raras, com transferência de
tecnologia, fortaleceriam a indústria nacional. No setor militar, a compra de
armamentos norte-americanos e eventuais parcerias industriais reforçariam a
capacidade das Forças Armadas. No campo empresarial, Embraer e JBS poderiam
expandir fábricas nos EUA, projetando capital brasileiro no maior mercado
mundial.
As empresas norte-americanas aqui instaladas
e as “campeãs nacionais” que operam nos EUA têm cadeias de produção muito
integradas e estão ajudando a melhorar o clima para as negociações. Foram
fundamentais para “cair a ficha” de que condicionar as relações entre os dois
países à anistia para Bolsonaro era uma posição insustentável do ponto de vista
da diplomacia mundial e da política interna.
Os norte-americanos não rasgam dólares. O
Brasil é o nono maior destino das exportações dos EUA e o quinto em termos de
superavit comercial para eles. Para os brasileiros, Washington é o segundo
parceiro exportador e responde por um terço dos investimentos estrangeiros. O
peso é visível em diversos setores, do agronegócio ao financeiro, dos
automóveis aos smartphones. Ignorar essa interdependência seria custoso para
ambos os lados.
Um tema que aumenta a distância entre Lula e
Trump, porém, é a questão climática. Em discurso no Pará, o presidente
brasileiro cobrou compromissos concretos, dos Estados Unidos e da China, para o
financiamento da preservação das florestas. Trump resiste a mecanismos
multilaterais de combate às mudanças climáticas, enquanto o Brasil busca
recursos externos para sustentar sua política ambiental.
A cobrança pode gerar atrito, mas não a ponto
de impedir um acordo. O encontro na Malásia, se confirmado, pode se tornar o
primeiro passo para superar a pior crise bilateral em décadas. O risco está no
choque de personalidades e agendas ideológicas. Lula e Trump, porém, também têm
a oportunidade de transformar a tensão comercial em cooperação concreta em
setores estratégicos, que é o que mais importa.
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