segunda-feira, 5 de março de 2012

Uma voz uníssona e congelada no tempo:: Maria Celina D'Araujo

Desde o fim da ditadura, presidentes civis têm sido complacentes com os atos de indisciplina e com a inércia das Forças Armadas

Na década de 1950, em plena guerra fria, o Clube Militar era tema constante nas primeiras páginas dos grandes jornais. Ali se debatiam “os grandes temas nacionais” e se organizavam chapas para a diretoria do Clube que expressavam os debates político-ideológicos da época: estatização do petróleo, guerra da Coreia, abertura da economia, nacionalismo, protecionismo, anti e pro getulismo, etc. A derrota ou a vitória de uma dessa chapas no Clube significava ganhos ou perdas para o governo ou a oposição.

Depois do golpe civil-militar de 1964, o Clube dedicou-se a manifestações “cívicas” que faziam a defesa do regime e do anticomunismo mas tudo começou a mudar com a redemocratização em 1985. O Clube transformou-se então em um espaço de defesa da ação militar durante a ditadura civil-militar e assim tem sido até hoje. Vem, desde então, praticando o discurso único: as Forças Armadas “salvaram o Brasil” e o que foi feito ou como foi feito não pode ser objeto de questionamento. A voz uníssona e congelada no tempo tem sido mantida nos comunicados do Clube ao longo de duas décadas de democratização. Parece um disco quebrado. O Clube Militar foi fundado em 1887, dois anos antes da proclamação da República que ajudou a fundar por meio de um golpe militar, e reúne representantes das três Forças.

Sintomaticamente tem ainda como sub-denominação “A Casa da República”. A palavra casa remete a esfera privada, assuntos íntimos, espaço da autonomia e da soberania particular de uma família ou grupo. O Clube nasceu assim, concebendo a República como assunto privativo dos militares. A “Casa” que deveria protegê-la era a dos militares. Da mesma forma, a “Casa” deveria protegê-los.

Nas últimas semanas, temos observado uma ampla circulação de notas e pronunciamentos do Clube bem como reações da Presidência da República e do Ministério da Defesa. Resumindo, representantes da reserva das três Forças lançaram nota criticando a presidente Dilma Rousseff por ser complacente com pronunciamentos de auxiliares diretos favoráveis à punição de torturadores; a presidente pediu ao ministro da Defesa para censurar a nota; o Clube reagiu dizendo que o ministro não tinha autoridade ou legitimidade; a presidente pediu punições, etc. O que está em jogo em meio a esses atos de indisciplina, censura, indelicadeza e falta de civilidade? Vou listar algumas razões.

Em primeiro lugar, a recorrente defesa militar da Lei da Anistia na forma como foi concebida em 1979 e mantida até hoje por meio de recente decisão do STF. Ou seja, impedindo que os agentes do Estado que praticaram tortura ou outras formas de desrespeito aos direitos humanos sejam levados a julgamento.

Em segundo, a crítica à Comissão da Verdade criada em novembro do ano passado que, sem pretensão punitiva, visa identificar o destino de mortos e desaparecidos no Brasil - cerca de 370. O Clube, assim como alguns partidários da punição aos torturadores, entende que a Comissão pode ser uma brecha para possíveis ações cíveis.

Em terceiro, está claro que embora o Clube seja o porta-voz dos militares para temas corporativos, a Força mais empenhada em manter o status quo é o Exército. Os governos militares foram governos de generais. Os assinantes dos manifestos do Clube são basicamente dessa Força. Menos de 10% dos signatários pertencem à Marinha ou à Aeronáutica. O Exército foi a Força mais envolvida na política e na repressão durante a ditadura civil-militar e a que mais ecoa a ideia de que precisa ser protegida pela “Casa”.

Em quarto, o episódio reflete a falta de comando político e civil dos presidentes eleitos desde o fim da ditadura sobre as Forças Armadas. Todos os presidentes civis foram complacentes com atos de indisciplina e com a inércia que marcam a instituição. Houve uma postura comodista: “Não vamos mexer com os militares porque eles podem causar problemas”. Com isso, manteve-se certa autonomia nas questões militares e incentivou-se as Forças Armadas a continuarem tendo poder de veto em questões políticas.

Em quinto, observa-se que os grandes ausentes em todo esse debate são o Congresso Nacional e os partidos políticos. Os temas da verdade histórica, da possível revisão da Lei de Anistia ficaram afeitos ao Executivo e ao Judiciário. Lembre-se o óbvio: o Legislativo é único órgão que pode fazer ou refazer leis.

Finalmente, este é mais um episódio de uma história longa de déficits no controle político e democrático das Forças Armadas no País. O que está em jogo não são apenas as possíveis ações cíveis que possam advir da Comissão da Verdade, mas a autoridade dos poderes democráticos no sentido de decidir sobre temas de direitos humanos e de construção de uma visão menos arrogante, de todas as partes, sobre quem pode falar pela história.

A Comissão da Verdade propõe-se a apurar o que aconteceu com nossos mortos e desaparecidos. Este direito não pode ser negado às famílias. O que vier depois daí poderá ser objeto de novos debates e embates. Assim é a vida. Melhor debater, rever, reconstruir do que fazer a defesa inerte de um “dever envergonhado” que compromete a estatura, a imagem do País, mas principalmente, nossos valores humanos.

Maria Celina D'Araujo é doutora em Ciência Política e professora da PUC-RIO

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ ALIÁS

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