O GRAMSCI DE AMERICANISMO E FORDISMO
Geraldo Augusto Pinto -
Antonio Gramsci. Americanismo e fordismo. Tradução de Gabriel Bogossian. Introdução de Ruy Braga. Revisão técnica e notas de Alvaro Bianchi. São Paulo: Hedra, 2008. 92p.
Haverá momento na história em que o ser humano deixará de chocar as futuras gerações com sua sempre infinita capacidade de transformação do mundo? Falo aqui de intelecção e ação sobre a natureza animada e inanimada. Do trabalho, no sentido do materialismo histórico. Por que não, então, deixar o essencialismo do termo “gerações” pela historicidade de “culturas” e, nesta perspectiva, indagar quantas delas ainda hão de ser metamorfoseadas pela atividade de outras e por quanto tempo ficarão inconscientes disso, até serem despertadas por obras outrora condenadas ao silêncio por um suposto anacronismo ou subversão?
Mais surpreendente, talvez, seja o perfil de algumas dessas obras: a sagacidade de um O príncipe, de Nicolau Maquiavel, ou a veemência de um Manifesto comunista, de Marx e Engels, nas poucas dezenas de páginas que contêm. Profundidade analítica, arrojo conceitual e poder de síntese, eis o perfil mais comum. Ou, em uma palavra, “simplicidade”, produto de uma erudição comprometida, de uma dedicação obsessiva, de um sonho prometéico. O texto Americanismo e fordismo, de Antonio Gramsci, sem dúvida é um desses raros exemplos.
Na carta de 19 março de 1927, Gramsci confidenciava, nos primeiros cinco meses dentro da prisão, à amiga e cunhada, Tatiana Schucht:
Estou atormentado [...] por esta idéia: de que é preciso fazer algo für ewig. [...] Em suma, segundo um plano preestabelecido, gostaria de me ocupar intensa e sistematicamente de alguns temas que me absorvessem e centralizassem minha vida interior (Cartas do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, v. 1, p. 128).
Tais palavras antecederam os vinte e nove “cadernos do cárcere”, manuscritos por Gramsci entre 1929 e 1935, e que, mais tarde, compuseram uma das mais impactantes obras de ciências sociais do século XX. Só esses fatos já tornam desnecessária uma breve apresentação aqui da vida e obra desse pensador. E talvez até mesmo redundante situá-lo entre os que com mais clareza resgataram o alcance teórico da obra de Marx em diversas frentes do conhecimento, reafirmando, aliás, contundentemente, a supremacia da filosofia como instrumento prático e revolucionário, em face do perigoso idealismo presente na suposta neutralidade axiológica com que se auto-afirma a ciência moderna.
O diferencial é que Gramsci, tal como o próprio Marx, foi de fato um pensador, e não apenas acadêmico de profissão ou intelectual por mera erudição. Ambos viveram à frente de arriscadas lutas sociais da classe trabalhadora, redigiram notáveis editoriais da imprensa combativa, disputaram o espaço literário com as lideranças intelectuais das classes dominantes, e, a seu modo e no seu contexto, cada um atuou diretamente sobre a estrutura política estabelecida, como chaves revolucionárias a abrir grilhões e ameaçar os pilares da dominação de classes. E, por isso mesmo, ambos foram, dentro e fora de seus países, incansavelmente perseguidos, difamados, silenciados quase à força.
Não é um acaso, portanto, que haja ainda outros pontos comuns entre estes dois pensadores. O texto Americanismo e fordismo de Gramsci reflete, por exemplo, as características marcantes de toda a sua obra, e esta, por sua vez, retoma um traço fundamental da própria obra de Marx, qual seja: uma investigação totalizante, que formula objetos de pesquisa partindo não somente de paradigmas científicos, mas da efetividade que assumem na história real. Uma investigação que não se esquiva, por meio dos sofismas da infinitude do real e dos limites da compreensão humana, de buscar as determinações fundadoras de cada momento histórico, decompondo a realidade, tal como a luz num prisma, em feixes de fenômenos que ganham sentido como partes de um todo explicativo. Enfim, uma investigação que rompe com a metafísica, ao sustentar-se na dialética e partir do real “efetivo”.
Gramsci não se perde em pormenorizar objetos de pesquisa. Nas poucas páginas de Americanismo e fordismo, esboça um plano de trabalho imenso, que, à primeira vista, tornaria todo o empreendimento inexeqüível nesse único espaço, não fosse o seu raro talento em cruzar as linhas gerais de múltiplos feixes de fenômenos para compor, de forma convincente, uma primeira tessitura explicativa, deixando ao mesmo tempo aberta e instigante a possibilidade da expansão da mesma trajetória de investigação em inúmeras escalas. A combinação entre genialidade, erudição e restrição carcerária, em Gramsci, fez dele mais do que um autor encerrado em respostas que dá às questões do seu tempo: fez dele um clássico da crítica contemporânea.
Assim, numa espécie de monólogo indagativo, conjugando memória e intuição dignas do exímio lingüista que foi, Gramsci realiza em Americanismo e fordismo uma análise que conecta as finanças e a propriedade monopolista de capital da indústria de massas aos estratagemas da organização do trabalho gerencial e operacional nas empresas; e também passa por temas, como a composição demográfica, geracional, etária, de gênero e religiosa das classes sociais na Europa e EUA, sobre a qual se formaram as suas principais instituições e modos de vida. As expressões “cultura”, “civilização” e mesmo “sexualidade” aparecem definindo-se neste texto em meio a termos basais do materialismo histórico, como produção, reprodução, trabalho, práxis, ideologia, educação e qualificação, Estado, controle social, entre tantos outros.
Enfim, Antonio Gramsci ocupa, entre os economistas políticos e filósofos críticos do capitalismo no século XX, um papel hegemônico (o que faz jus a um dos seus conceitos inovadores, o de hegemonia). E a introdução de Ruy Braga, docente da Universidade de São Paulo (USP), nesta edição (a primeira no Brasil que traz apenas esse texto em um só livro), tem o predicado de mostrá-lo bem. Ou seja, como todo texto clássico, Americanismo e fordismo continuará a nos surpreender e ensinar, a cada releitura.
Geraldo Augusto Pinto é docente do Centro de Educação e Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Foz do Iguaçu.
Geraldo Augusto Pinto -
Antonio Gramsci. Americanismo e fordismo. Tradução de Gabriel Bogossian. Introdução de Ruy Braga. Revisão técnica e notas de Alvaro Bianchi. São Paulo: Hedra, 2008. 92p.
Haverá momento na história em que o ser humano deixará de chocar as futuras gerações com sua sempre infinita capacidade de transformação do mundo? Falo aqui de intelecção e ação sobre a natureza animada e inanimada. Do trabalho, no sentido do materialismo histórico. Por que não, então, deixar o essencialismo do termo “gerações” pela historicidade de “culturas” e, nesta perspectiva, indagar quantas delas ainda hão de ser metamorfoseadas pela atividade de outras e por quanto tempo ficarão inconscientes disso, até serem despertadas por obras outrora condenadas ao silêncio por um suposto anacronismo ou subversão?
Mais surpreendente, talvez, seja o perfil de algumas dessas obras: a sagacidade de um O príncipe, de Nicolau Maquiavel, ou a veemência de um Manifesto comunista, de Marx e Engels, nas poucas dezenas de páginas que contêm. Profundidade analítica, arrojo conceitual e poder de síntese, eis o perfil mais comum. Ou, em uma palavra, “simplicidade”, produto de uma erudição comprometida, de uma dedicação obsessiva, de um sonho prometéico. O texto Americanismo e fordismo, de Antonio Gramsci, sem dúvida é um desses raros exemplos.
Na carta de 19 março de 1927, Gramsci confidenciava, nos primeiros cinco meses dentro da prisão, à amiga e cunhada, Tatiana Schucht:
Estou atormentado [...] por esta idéia: de que é preciso fazer algo für ewig. [...] Em suma, segundo um plano preestabelecido, gostaria de me ocupar intensa e sistematicamente de alguns temas que me absorvessem e centralizassem minha vida interior (Cartas do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, v. 1, p. 128).
Tais palavras antecederam os vinte e nove “cadernos do cárcere”, manuscritos por Gramsci entre 1929 e 1935, e que, mais tarde, compuseram uma das mais impactantes obras de ciências sociais do século XX. Só esses fatos já tornam desnecessária uma breve apresentação aqui da vida e obra desse pensador. E talvez até mesmo redundante situá-lo entre os que com mais clareza resgataram o alcance teórico da obra de Marx em diversas frentes do conhecimento, reafirmando, aliás, contundentemente, a supremacia da filosofia como instrumento prático e revolucionário, em face do perigoso idealismo presente na suposta neutralidade axiológica com que se auto-afirma a ciência moderna.
O diferencial é que Gramsci, tal como o próprio Marx, foi de fato um pensador, e não apenas acadêmico de profissão ou intelectual por mera erudição. Ambos viveram à frente de arriscadas lutas sociais da classe trabalhadora, redigiram notáveis editoriais da imprensa combativa, disputaram o espaço literário com as lideranças intelectuais das classes dominantes, e, a seu modo e no seu contexto, cada um atuou diretamente sobre a estrutura política estabelecida, como chaves revolucionárias a abrir grilhões e ameaçar os pilares da dominação de classes. E, por isso mesmo, ambos foram, dentro e fora de seus países, incansavelmente perseguidos, difamados, silenciados quase à força.
Não é um acaso, portanto, que haja ainda outros pontos comuns entre estes dois pensadores. O texto Americanismo e fordismo de Gramsci reflete, por exemplo, as características marcantes de toda a sua obra, e esta, por sua vez, retoma um traço fundamental da própria obra de Marx, qual seja: uma investigação totalizante, que formula objetos de pesquisa partindo não somente de paradigmas científicos, mas da efetividade que assumem na história real. Uma investigação que não se esquiva, por meio dos sofismas da infinitude do real e dos limites da compreensão humana, de buscar as determinações fundadoras de cada momento histórico, decompondo a realidade, tal como a luz num prisma, em feixes de fenômenos que ganham sentido como partes de um todo explicativo. Enfim, uma investigação que rompe com a metafísica, ao sustentar-se na dialética e partir do real “efetivo”.
Gramsci não se perde em pormenorizar objetos de pesquisa. Nas poucas páginas de Americanismo e fordismo, esboça um plano de trabalho imenso, que, à primeira vista, tornaria todo o empreendimento inexeqüível nesse único espaço, não fosse o seu raro talento em cruzar as linhas gerais de múltiplos feixes de fenômenos para compor, de forma convincente, uma primeira tessitura explicativa, deixando ao mesmo tempo aberta e instigante a possibilidade da expansão da mesma trajetória de investigação em inúmeras escalas. A combinação entre genialidade, erudição e restrição carcerária, em Gramsci, fez dele mais do que um autor encerrado em respostas que dá às questões do seu tempo: fez dele um clássico da crítica contemporânea.
Assim, numa espécie de monólogo indagativo, conjugando memória e intuição dignas do exímio lingüista que foi, Gramsci realiza em Americanismo e fordismo uma análise que conecta as finanças e a propriedade monopolista de capital da indústria de massas aos estratagemas da organização do trabalho gerencial e operacional nas empresas; e também passa por temas, como a composição demográfica, geracional, etária, de gênero e religiosa das classes sociais na Europa e EUA, sobre a qual se formaram as suas principais instituições e modos de vida. As expressões “cultura”, “civilização” e mesmo “sexualidade” aparecem definindo-se neste texto em meio a termos basais do materialismo histórico, como produção, reprodução, trabalho, práxis, ideologia, educação e qualificação, Estado, controle social, entre tantos outros.
Enfim, Antonio Gramsci ocupa, entre os economistas políticos e filósofos críticos do capitalismo no século XX, um papel hegemônico (o que faz jus a um dos seus conceitos inovadores, o de hegemonia). E a introdução de Ruy Braga, docente da Universidade de São Paulo (USP), nesta edição (a primeira no Brasil que traz apenas esse texto em um só livro), tem o predicado de mostrá-lo bem. Ou seja, como todo texto clássico, Americanismo e fordismo continuará a nos surpreender e ensinar, a cada releitura.
Geraldo Augusto Pinto é docente do Centro de Educação e Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Foz do Iguaçu.
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