Em tempos de "indignados" acampados em praças ao redor do planeta, cuja mais perfeita tradução é o "Ocupem Wall Street", que de Nova York se espalhou por diversas cidades dos Estados Unidos e do mundo, nada mais atual do que a exposição "Dinheiro e Beleza. Banqueiros, Botticelli e a fogueira das vaidades", em exibição até 22 de janeiro no belíssimo Palazzo Strozzi, um dos mais finos exemplos da arquitetura da Renascença, no centro de Florença, na Itália.
Um dos aspectos abordados na exposição é a usura, que desde a Antiquidade até hoje separa a economia da moralidade, no centro dos debates dos "indignados" atuais, que consideram que o capitalismo precisa de regulamentações e amarras contra a especulação financeira.
Os curadores da exposição, Ludovica Sebregondi e Tim Parks, têm visões distintas a partir de suas origens: ela é uma historiadora com formação católica, ele um jornalista protestante. Seus textos, nos quais me baseei para escrever esta coluna, orientam toda a exposição. A partir da criação do florin de ouro, em 1252, que se transformou na principal medida de valor em toda Europa, trazendo para Florença grande prestígio e provando-se importante trunfo para os comerciantes e banqueiros da cidade, a exibição percorre dois séculos e meio "da mais resplandecente época da história de Florença", que experimentou nesse período rápido desenvolvimento econômico.
A atividade de emprestar dinheiro era das poucas permitidas aos judeus - a outra era a medicina -, e sempre foi vista de maneira negativa.
Nessa tensão, "doações para a salvação da alma" tornaram-se comuns, dirigidas à caridade ou às artes. A Igreja tinha preocupação de proteger pessoas em dificuldades financeiras, e os franciscanos, a partir de 1462, ajudaram a estabelecer instituições que impediam a usura.
O famoso óleo de Marinus van Reymerswaele, de 1540, "Os usurários", do Museu Stibbert de Florença, faz parte da exposição.
As imagens de usurários queimando no fogo do inferno perturbavam tanto emprestadores quanto tomadores de empréstimos.
A "carta de troca" surgiu para permitir que fosse dado um empréstimo em troca de pagamento de juros sem que parecesse usura. Por mais de 200 anos ela permitiu a banqueiros lucrarem sem se sentirem usurários. Funcionava assim: se alguém queria trocar florins por libras inglesas, por exemplo, os florins eram dados em Florença e as libras recebidas em Londres.
A viagem para Londres demorava 90 dias, e nesse período, a taxa de troca se alterava, produzindo lucro. Muitas vezes nem era preciso viajar.
Outro quadro de Marinus van Reymerswaele, "O cambista e sua mulher", de 1540, do Museu Nacional de Bargello, em Florença, também está na exposição, e já mostra uma mudança na percepção.
O cambista já não é uma figura grotesca como no quadro "Os usurários". A "carta de troca" tornou-se o principal instrumento de crédito e financiava o comércio internacional. Os banqueiros passaram a atuar também como comerciantes.
Segundo a curadora Ludovica Sebregondi, a tensão entre a exigência da Igreja de sobriedade e o amor pelo luxo produziu obras de artes sublimes nos séculos XIV e XV.
O estabelecimento de uma moeda como medida de valor de todas as coisas, ao mesmo tempo em que permitiu comparações entre, por exemplo, um barril de vinho e uma prece por um ser amado doente, trouxe uma sensação de desconforto, especialmente porque na época as diferenças sociais eram tidas como expressões da vontade divina.
Eram frequentes as queixas no século XIV de que um camponês podia usar seu dinheiro para mudar-se para um local melhor ou até mesmo "abrir as portas do paraíso".
O livre uso do dinheiro ameaçava ao mesmo tempo o status quo e a metafísica cristã, ironiza Tim Parks, outro dos curadores da mostra.
Um exemplo dessa tensão é o quadro de Botticelli "Madona e a criança", pintado para ajudar as preces de um cliente privado, coisa que só os muito ricos podiam pagar. A Madona, embora tenha dado à luz em uma manjedoura, está ricamente vestida.
A partir do século XIII, com a disseminação do comércio e das demandas de consumo, os símbolos de riqueza foram se multiplicando, e aumentando também aqueles que tinham condições de exibir sua riqueza, criando uma tensão com os ensinamentos da Igreja que definiam as classes sociais como desejos divinos.
Foi então baixada uma legislação que pretendia limitar a exibição da riqueza não apenas em roupas e ornamentos, mas também em festas, banquetes, batismos e funerais.
O século XIV trouxe duas novidades: cavaleiros, doutores, médicos, juízes e suas mulheres tinham permissão de ostentar suas riquezas, e tornou-se aceitável que se burlasse a lei desde que se pagasse uma multa, o que ajudava a encher os cofres públicos.
A crise da sociedade Florentina no final do século está ligada à disputa entre os Medici e o frade Girolano Savonarola. A luta entre Lorenzo e o frade de Ferrara marca o final do século XV.
Uma das peças mais bonitas da exposição é "Cristo crucificado", uma têmpera em molde pintado dos dois lados por Botticelli, de 1496, que tem tudo a ver com a pregação de Savonarola. Em 1497 e 1498 ele organizou duas fogueiras de coisas "vãs, lascivas e desonestas" na Piazza della Signoria em Florença. A polêmica que contribuiu para a sua derrocada e execução.
Para a Igreja na época, o usurário peca porque vende o intervalo de tempo entre o momento em que empresta o dinheiro e o recebe de volta, com lucro. Ele, portanto, negocia o tempo, que pertence a Deus. Mas havia exceções: Tomás de Aquino estabeleceu as condições para que contratos legítimos pudessem cobrar juros, e Bernardino de Siena fez a distinção entre um usurário e um banqueiro, cujo negócio permitia a circulação da riqueza, ainda hoje base do sistema financeiro.
Condenada pela Igreja, que proibia a reprodução do dinheiro sem a produção ou transformação de bens, a usura provoca a pergunta no ar até hoje: onde acaba a compensação justa e começa o lucro que destrói vidas?
FONTE: O GLOBO
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