Por que o combate à corrupção e ética na política, antigas bandeiras do PT, não podem hoje ser tratados como um "udenismo reciclado"
O grande tema da política brasileira parece, a uma leitura dos jornais ou numa conversa com a classe média, ser a corrupção. E esse é mesmo o problema crucial na república. Uso aqui o termo república, como sustentei em meus livros A República e A Democracia, como o contrário não da monarquia, como aprendemos na escola, mas da corrupção. A "boa política" de hoje é republicana e democrática, mas os termos não são sinônimos. Democracia é o regime no qual a maioria do povo decide, distinguindo-se do que no passado se chamou monarquia e aristocracia e hoje chamaríamos de ditadura. O que define o regime democrático é o poder da maioria. Já a república, etimologicamente, não é um meio de escolher governantes, nem de votar leis. É a grande finalidade do viver em conjunto: é ter por meta a res publica, a coisa pública, o bem comum. Daí que o ideal seja termos democracias voltadas para o bem comum. Não é fácil, mas é possível.
Por isso, se a república é o empenho no bem comum, seu inimigo é o furto do público pelo particular, a destruição do que é de todos em favor de poucos: a corrupção. Se a melhor forma de governo é a república democrática (o regime em que a maioria decide, em prol do bem de todos), ela tem de lutar implacavelmente contra a corrupção. Nada desmoraliza tanto a boa política quanto o homem de bem "ter vergonha de ser honesto", como dizia Rui Barbosa. Daí, a preocupação com a ética na política. Isso não é udenismo reciclado, até porque por muito tempo foi a grife do PT, partido que conseguia identificar a preocupação com a honestidade e o empenho na justiça social. Esse é, sim, o cerne de uma política decente.
Infelizmente, é difícil identificar a corrupção e seus praticantes. Ao contrário do que se propala, o País avançou nisso. Vários órgãos dos três poderes se empenham em coibir e punir a corrupção. Mas temos dois problemas sérios. O primeiro são os corruptos hábeis, que driblam os controles. Dou um exemplo. Para garantir a honestidade dos dirigentes, uma série de restrições lhes é imposta. Se viajam a serviço, devem prestar contas da viagem e das diárias recebidas. Ora, o que faria um corrupto? Não pediria diárias ou passagem ao governo. Podendo ganhar milhões com um ato ilegal, por que deixar pegadas? Pois quase todo o combate à corrupção se baseia em rastros. Quando um reitor pagou um espetáculo de fado com dinheiro público, agiu errado, mas os próprios sinais que deixou provam que não era parte de uma quadrilha. Se ele estivesse envolvido num esquema de assalto aos cofres públicos, ganharia muito mais – e não deixaria transparecer nada. Esse é uma dificuldade no combate à corrupção. Há outra.
Para combater os malfeitos, impõem-se controles, mas são tantos que inviabilizam a vida dos gestores... honestos. Vejam o ordenador de despesas – o servidor que pode mandar pagar algo, seja uma soma pequena, seja elevada. Eles vivem apavorados. Sabem que podem ser acusados por uma assinatura. Assim, para evitar malfeitos, cada despesa é autorizada por uma série de escalões. Só que o responsável é o último, o mais alto na série. Ora, tem ele certeza de que os outros fizeram tudo direito? Pois quem paga é ele. Daí que precise ler tudo, o que é impossível, entender tudo, o que também não dá, ou delegar a pessoas de total confiança sua, que podem traí-lo. Para evitar a corrupção, multiplicamos o red tape, a burocracia.
Chegamos aqui ao ponto crucial. A corrupção aumentou ou não no governo Lula? O combate a ela é uma luta moral ou resvala para o moralismo? As duas questões estão ligadas. Se cresceu a corrupção, a condenação ética ao lulismo – ou ao PT – se justifica. O mesmo vale, por sinal, para a possível corrupção tucana, que em São Paulo a Assembleia jamais apura. Esse é o grande problema, aliás: fala-se muito, sabe-se pouco. Por várias razões. Primeira: como disse, a grande corrupção é furtiva. Sou reticente quando incidem acusações sobre somas pequenas, possíveis erros, dificuldade com a papelada. Creio que isso desvia a atenção do dolo, das grandes somas. Mas a segunda razão é que infelizmente os políticos e a mídia brasileiros têm pouca vontade de pôr fim à corrupção. Os acusadores mais veementes dos corruptos só condenam a corrupção do lado oposto.
Vejo isso no Facebook. Quando se levanta uma suspeita contra seu lado, indignam-se. Dizem que o outro lado (o "do mal") os acusa para esconder seus malfeitos. Recusam-se a ser investigados, com uma indignação que até parece autêntica. Assim, o combate à corrupção, que deveria ser empenho de todos, se subordina a agendas baixas de campanhas políticas. Isso explica por que mais gente foi protestar contra o não metrô em Higienópolis do que contra a corrupção no Brasil: porque a causa não é limpa. O que é, convenhamos, uma grande pena.
E há um finalmente. Quase toda a crítica ao governo se concentra na corrupção, real ou imaginária. Não vejo os tucanos irem além de defender a privatização do pré-sal ou de atacar o Bolsa Família (mesmo assim, em 2010, Serra propôs aumentá-la, de modo que essa bandeira saiu de cena). No Feice, quem ataca a corrupção não propõe nada para o Brasil. A discussão política ficou pobre. Sinal disso é a recente entrevista de Aécio Neves. O Brasil merece mais. Merece pelo menos duas coisas: debates sobre políticas para o País e um combate, sem uso partidário, contra a corrupção.
*Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
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