Passado quase um mês
do segundo turno das eleições que consagraram Fernando Haddad como futuro
prefeito de São Paulo, daria até para dizer que a cidade experimenta um bem-vindo
clima de distensão política, após os confrontos eleitorais que ninguém mais
quer lembrar, tão ruins foram. Daria mesmo, não fosse a violência.
Ao aumentar
dramaticamente de intensidade, a violência vem produzindo mortes em cascata,
quase sempre sob a forma de execuções sumárias de autoria desconhecida. Homens
encapuzados, que surgem das sombras, mas não só. Medo e pânico nas famílias,
sobretudo nas periferias urbanas. É uma situação que faz a cidade ficar meio à
deriva e põe em xeque a política de segurança seguida pelos governos estaduais
nos últimos anos, evidenciando a ineficiência dos métodos repressivos por ela
recomendados e em nome dela praticados.
Embora anunciada há
tempo pelos estudiosos da área, a situação ainda não passou para o plano
propriamente político, no qual deverá ser avaliada com outros critérios. Os
paulistanos - mas não somente eles - estão à espera de explicações, além,
evidentemente, de medidas que desarmem a bomba em que parecem viver. Querem saber,
por exemplo, por que a polícia paulista é tão temida e mal vista quanto o PCC,
a ponto de ser percebida como tão responsável quanto os criminosos pela
violência que saiu do controle. A sucessão de revides, chacinas, vinganças e
extermínios expõe a céu aberto a falta que faz uma visão clara de polícia, de
política de segurança e de gestão democrática da segurança pública. Políticas
de segurança movidas a tiros, como se se estivesse numa "guerra não
declarada" permanente, são a estrada mais curta para o fracasso. Todos
perdem com elas, a começar dos mais frágeis. Pelo respeito a seus cidadãos e a
seus policiais, vitimados igualmente pelo fracasso que se prolonga, São Paulo
merece coisa melhor.
A opinião pública
também quer saber por que é que somente agora um ministro de Estado - José
Eduardo Cardoso, da Justiça - resolveu denunciar a situação calamitosa e
indigna dos cárceres brasileiros, verdadeiras usinas de degradação e alimento
poderoso para a violência. Virá de sua denúncia oportuna alguma medida concreta
que modifique a situação, modernize e humanize as prisões do País?
As três instâncias
federativas - União, Estados e municípios - estão envolvidas até a medula com o
tema. São corresponsáveis pela situação a que se chegou. O mais correto,
portanto, o mais criterioso e o mais democrático, é que arregacem as mangas, se
deem as mãos e cooperem entre si. Efetivamente, em termos práticos, não de modo
retórico e protocolar.
Seria trágico, por
exemplo, se disputas partidárias e cálculos eleitorais terminassem por se
interpor entre governantes do PT e do PSDB e complicassem o tratamento
cooperativo e solidário do problema.
Por isso não há como
deixar de saudar o clima de distensão política das últimas semanas. É um novo
ponto de partida. Ele não implica nem significa o cancelamento das diferenças e
dos conflitos interpartidários, até porque, com a derrota do PSDB na cidade que
era sua menina dos olhos, o partido terá de afiar as armas da crítica para
tentar voltar a crescer. É de esperar que deixe de lado o estilo belicoso e
adjetivado (improdutivo em termos de imagem e de sedução da cidadania) e adote
a contundência analítica, que certamente será ouvida pela população e recebida
com atenção pelo PT. Com mais adjetivos que substantivos, olhando mais para
trás que para a frente, nada acontecerá de positivo para o partido.
Da parte do PT, e
especialmente do prefeito Fernando Haddad, o momento não é mais de júbilo e
comemoração da vitória, mas de início de um trabalho de construção que
justifique os votos obtidos. Aqui também pouca serventia terão a retórica
inflamada, o discurso da confrontação e da destruição dos adversários, como se
fossem inimigos. Trata-se muito mais de ponderar, agregar, congregar, ainda que
sem abrir mão da identidade e das pretensões.
Fernando Haddad tem
talento para empreender esse movimento. Flutua com bastante independência
dentro do PT. Parece sinceramente determinado a fazer um governo que contribua
para pôr em novas bases o relacionamento entre os políticos, com suas siglas, e
entre os políticos, os governantes e a população. Mostrou suas cartas logo
depois de fechadas as urnas, quando, em entrevista a O Estado de S. Paulo
(31/10), pediu que se levasse em consideração o seu passado, que, segundo ele,
é um "testemunho" da sua "disposição para construir consensos em
torno de propostas que atendam ao interesse público". Com a frase quis
valorizar sua trajetória, mas também estabeleceu um princípio de conduta,
reforçado com a declaração de que gestos de distensão "são importantes
para mostrar que divergências são discutidas durante a campanha".
Deu um recado para
fora, para o mundo político, e para dentro, para seu partido, que ainda tem
integrantes que permanecem "em campanha", dispostos a aproveitar a
onda para esmagar seus adversários e "inimigos". Para ambos, o novo
prefeito enfatizou que o seu será um "governo de coalizão", mas que
não fará "toma lá, dá cá" e resistirá com firmeza e serenidade ao
assédio e à pressão desenfreada por cargos. Não loteará seu secretariado. O
norte a ser seguido será o plano de governo aprovado nas urnas. Nas primeiras
nomeações que fez, de alto teor técnico, foi o que se viu.
Da Prefeitura da
maior cidade do País pode despontar uma perspectiva animadora. Se ela se
confirmar, e for complementada com iniciativas semelhantes das demais
instâncias da Federação e do conjunto dos partidos democráticos, contribuirá
sobremaneira para que se estabilize outra plataforma de relacionamento
intergovernamental no País, com a qual problemas gravíssimos como o da
segurança pública e da violência poderão ser muito mais bem equacionados.
Marco Aurélio Nogueira
- professor titular de teoria política e diretor do instituto de políticas
públicas e relações internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/11/2012
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