“Dois importantes processos da vida
republicana, a sucessão municipal e a Ação Penal 470, já são deixados para
trás, páginas viradas do nosso folhetim, mas que deixam boas lições para que se
recuperem os fios dessa obra coletiva que tem sido a nossa História desde a
democratização do País nos idos de 1985. A melhor delas está na oportunidade
para o pleno assentamento da República e de suas instituições, na esteira de um
julgamento, pela mais alta Corte do Judiciário, de membros influentes da
coalizão partidária governamental, quase todos condenados a penas severas,
sendo, como notório, que oito dos seus magistrados foram selecionados, para a
aprovação do Senado Federal, por livre discrição da chefia do Poder Executivo
sob comando do PT.
Nesse episódio, a
autonomia do Poder Judiciário experimentou o seu batismo de fogo, podendo-se
sustentar - tal como na modelagem da pequena obra-prima de Philippe Nonet e
Philip Selznick Direito e Sociedade: a Transição ao Sistema Jurídico Responsivo
(Editora Revan, Rio de Janeiro, 2010) - que agora completamos, cabalmente, a
passagem do tipo de Direito Repressivo, em que o direito se encontra
subordinado aos fins do poder político, para o do Direito Autônomo, um governo
de leis, e não de homens. Sempre se pode tentar desqualificar o ineditismo
dessa passagem com o fato de que é da tradição das nossas Constituições
republicanas dispor sobre o princípio da autonomia do Judiciário. Mas uma coisa
é o caráter simbólico das leis e algo bem diverso, a sua efetiva eficácia, como
agora, quando que elas se impuseram, diante de uma circunstância concreta e por
fatos delituosos determinados, a um poder político vitorioso em três sucessões
presidenciais consecutivas, submetendo a julgamento e condenando vários dos
seus dirigentes (...).
(...) Os sinais emitidos pela sucessão municipal, por sua vez, com seus
resultados, em boa parte, favoráveis a candidatos e partidos de programas
orientados por agendas de políticas públicas socialmente inclusivas, puseram em
evidência que os canais e instrumentos da democracia política são aptos a
conceder passagem às expectativas por mudança social, dispensando atalhos, em
particular os sombrios. Deve-se interpretar a firme defesa de princípios e
valores que se fez ouvir do plenário do STF, bem longe de uma chave moralista
vazia de conteúdo, como a confirmação dos rumos traçados pelo constituinte,
inequívocos em sua disposição farta de meios para que os fins da democratização
social venham a ser atingidos pela via da República e de suas instituições.
Nesse sentido,
contrariamente ao que muitos sugerem, o episódio que ora se encerra não guarda
relação com o intrincado tema da judicialização da política. Em linguagem de
Jürgen Habermas, um inimigo notório de intervenções judiciais no campo da
política, o julgamento do Supremo Tribunal, tudo bem contado, fixou-se na
salvaguarda do "núcleo dogmático" - uma expressão dele - de uma
Constituição democrática, qual seja nos procedimentos que garantam uma livre e
igual competição política a fim de que a soberania popular não seja
contaminada, ou pior, colonizada pelo poder da administração e do sistema
econômico.”
Luiz Werneck Vianna, sociólogo, professor-pesquisador da
PUC-Rio, em artigo ‘Virar a página da Ação Penal 470, Estado de São Paulo,
25/11/2012.
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