O escritor Henry
David Thoreau disse que todo cidadão deveria visitar uma cadeia para ter uma
ideia do nível de civilização da sociedade em que vive. É um desejo contra a
corrente: todos querem esquecer a cadeia, um espaço de dramas e tristeza, uma
espécie de purgatório onde as almas cumprem a sua pena.
A reforma do sistema
penitenciário sempre foi um tema da esquerda brasileira. Assim que terminou a
ditadura militar, formamos comissão para entrar nas prisões e estimulamos os
mutirões destinados a liberar os que já haviam cumprido sua pena. Brizola foi
mais longe, autorizando a implosão do presídio da Ilha Grande. Pessoalmente,
preferia que o presídio fosse restaurado, com múltiplos usos, e permanecesse
como referência histórica. Hoje são escombros e só os mais velhos se lembram
daquilo, assim como do próprio lazareto, um espaço cavernoso na ilha que no
período colonial servia para prender estrangeiros indesejáveis, alguns em
regime de quarentena.
O PT faz parte dessa
história. Formada no momento em que houve um massacre em Franco da Rocha, a
Comissão Teotônio Vilela visitou dezenas de presídios. Dela participavam
importantes intelectuais do PT: Antonio Candido, Marilena Chauí e Hélio
Pellegrino, entre outros.
A primeira Comissão
de Direitos Humanos da Câmara foi inspirada pelo deputado mineiro Nilmário
Miranda (PT). Depois dele, Marcos Rolim (PT-RS) organizou uma caravana nacional
para denunciar as condições carcerárias. Recentemente, o deputado Domingos
Dutra (PT-MA) fez de novo a peregrinação pelos presídios. Estivemos juntos em
São Luís, onde alguns presos foram decapitados num motim.
Com esse passado,
fiquei perplexo com a afirmação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
de que preferia morrer a viver anos numa "prisão nossa". Foram dez
anos de governo petista, com vários ex-prisioneiros em sua cúpula, a começar
pela presidenta Dilma Rousseff. Será que o tempo passou assim de forma tão
imperceptível para os que assumiram o poder em 2002?
Nossas palavras não
corresponderam aos fatos, nossa piscina está cheia de ratos. Nos presídios, o
governo petista foi apenas uma continuidade medíocre das forças que combatia.
As cadeias
brasileiras ganharam visibilidade com a passagem por elas de intelectuais da
esquerda. A própria Ilha Grande foi celebrizada por Graciliano Ramos em
Memórias do Cárcere, transformado em filme. Com a prisão dos opositores ao regime
militar de 64, nova luz se fez sobre os presídios. Daí, no período de
democratização, os inúmeros esforços para chamar a atenção sobre eles e a
necessidade de humanizá-los e modernizá-los.
Com pena superior a
dez anos, o destino de José Dirceu despertou em Cardozo e no ministro do
Supremo Tribunal Dias Toffoli, uma nova reflexão sobre o Código Penal e os
presídios. Não é o mesmo tipo de prisão de Graciliano, de Nise da Silveira ou
mesmo dos opositores da ditadura militar. Os argumentos não são mais políticos
nem se fala em investimentos e reformas em presídios. Toffoli lamentou que um
diretora do Banco Rural fosse presa porque era uma bailarina e não representava
perigo. Açougueiros ou motoristas de caminhão representam algum perigo? Sua
tese indicava que a cadeia deveria ser reservada aos crimes de sangue.
Não se deve ser como
a China, que fuzila corruptos. Mas daí a ter uma nova tolerância com a
corrupção vai enorme distância. Não era a esquerda que afirmava que a
corrupção, desviando recursos vitais para os mais pobres, os condena à morte
mais rápida? É uma ironia que uma parte do universo político se interesse pelas
penitenciárias porque José Dirceu foi condenado.
No mundo real - em
que os delicados, como dizia o poeta, preferiam morrer -, incêndios de ônibus,
assassinatos, rastros de fumaça, tudo parece vir dos presídios. Maus tratos e
execuções sumárias são usados como pretexto para incendiar as ruas. Uma
política real de direitos humanos tende a reduzir esses pretextos. Mas, ainda
assim, há novos elementos que a experiência no campo dos direitos humanos me
obriga a refletir. O primeiro é o silêncio com que o movimento recebe a morte
de policiais. Continuamos vendo os direitos humanos ameaçados apenas pelo
Estado, ignorado novas frentes de ameaça, como traficantes e milícias.
Outra ilusão, que os
ingleses superaram: a de que os presos cessam de cometer crimes quando vão para
a prisão. Eles criaram um setor destinado a prevenir, investigar e até punir os
crimes dentro dos presídios. A situação carcerária é muito complicada nas
cadeias superlotadas, mas também nas chamadas penitenciárias de segurança
máxima, onde estão os presos mais perigosos.
O mensalão é uma gota
nesse oceano que envolve 300 mil pessoas e suas famílias. Não se resolve a
questão como na vida cotidiana. Roberto DaMatta diz que muitos brasileiros
odeiam fila porque é um tratamento democrático. E às vezes dão um jeito de
obter um tratamento especial.
As falas de Cardozo e
Toffoli não me entristecem apenas porque ressaltam a ineficácia do governo na
reforma dos presídios. Entristecem porque a esquerda, além de desprezar o
discurso humanista na prática do poder, opta, em defesa própria, pela visão
aristocrática que tanto combateu no século passado.
O problema dos
presídios continua a existir, apesar de todas as abordagens escapistas. Por que
não aproveitar o momento e encarar uma reforma?
É preciso aceitar a
premissa de que a cadeia é para todos os condenados a ela. Isso dá novo sentido
àquela frase de Thoreau. É bom conhecer a cadeia não só para testar o nível de
civilização do País. Um dia, você mesmo, ou alguém muito próximo, pode passar
alguns anos por lá.
Ainda sonho com a
cadeia. Não com as paredes de concreto, sua atmosfera, mas como uma sensação
abstrata de imobilidade. É apenas a metáfora da inércia diante de atitudes que
precisam ser tomadas no cotidiano.
Os presídios no
Brasil são da Idade Média, diz o ministro. E as nossas cabeças foram detidas
quando? Em que cela ou calabouço elas adormecem até hoje?
Como dizia o
humorista carioca Don Rossé Cavaca: acorda, já é 2012 e você precisa trabalhar.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/11/2012
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