A legalidade deve guiar política e economia ou seus
atores devem ter esfera jurídica e moral própria?
Em meio à descoberta generalizada da existência da curiosa ciência da dosimetria, os brasileiros foram informados do mais recente contributo do Poder Judiciário para o insano problema da superlotação carcerária. Um conhecido empresário goiano, de alcunha Cachoeira, apesar de condenado em ação penal referente a um pormenor heterodoxo vinculado a seu imparável empreendedorismo, foi agraciado com regime de prisão aberta, em função da tal dosimetria. Certamente, contribuíram para a moderação penal a reputação ilibada e a baixa periculosidade do personagem. Em virtude da própria superlotação carcerária, a pena, que o obrigaria a passar as noites em estabelecimento prisional, foi transformada em prisão domiciliar.
Peço que não me tomem como um, digamos, "barbosista" nestes
assuntos, mas, dada a qualidade domiciliar do apenado, o termo "prisão
domiciliar" soa como escárnio. É possível que o personagem retorne à
hospedagem pública compulsória, por efeito de algum recurso ou de outra ação
penal, já que, ao que parece, seu empreendedorismo é tentacular. Mas não deixa
de ser notável a perspectiva do pleno regresso ao conforto do lar, como
desfecho possível de longa carreira de serviços prestados à atividade de ganhar
dinheiro, sem apego a formalidades.
Um dos aspectos mais notáveis do ambiente no qual a notícia foi
divulgada é o do relativo apagamento da memória coletiva das aventuras e
desventuras do personagem. O termo "Cachoeira", hoje secundário nas
coberturas jornalísticas, refere-se prioritariamente às escaramuças em torno da
Comissão Parlamentar de Inquérito que o ostenta como seu nome. O enredo
político-empresarial-penal, condensado biograficamente no personagem, saiu de
cena; já não está nas primeiras páginas e, por vezes, desapareceu na cobertura
diária.
A quase invisibilidade dá mesmo o que pensar. Antes de tudo, efeito da
concorrência desleal do drama da Ação Penal 470. O julgamento do
"mensalão" exerceu sobre nossa capacidade de observação do País um
efeito de ofuscação, pelo qual a fisionomia de outros aspectos, também dramáticos,
ficou encoberta pelo excesso de luz. Ao que parece, o País deve ser
monotemático e sequencial na reflexão sobre suas agruras: um drama de cada vez,
até que o subsequente o soterre e ocupe o frenesi da cobertura jornalística.
Há, pois, um inegável efeito de camuflagem na coisa, o que não significa supor
que a ela - a coisa - seja urdida por alguma inteligência maligna e onipotente.
A invisibilidade do evento matricial decorre ainda do que se passa no
âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito. Ali trata-se menos de inquérito do
que de um experimento aberto de combate político, no qual retaliações e
proteções abundam na inacreditável conclusão do relator. A CPI, ademais,
reforça a tradição de que a arena do conflito entre governo e oposição não é má
hospedeira da chicana de especialistas em direito penal.
Muito teríamos a ganhar, em termos analíticos, se buscássemos associar
numa mesma interpretação os eventos da AP-470 ao procedimento penal imposto ao
empresário goiano. Juntos compõem uma fábula maior, delineada pelo tema da
ilimitação.
Dois macroprocessos marcam a fisionomia do Brasil contemporâneo: (1) uma
expansão acelerada do mundo público, aqui compreendido como universo que inclui
não apenas a complexidade e crescimento do Estado, mas também aquilo que os politólogos
denominam "mercado político", um termo, na verdade excelente; (2) uma
expansão igualmente acelerada das oportunidades econômicas, aqui entendidas
como universo de ações voltadas para a maximização crescente da acumulação de
patrimônio. É inegável que tais processos, mais do que concomitantes, são
convergentes e complementares. Nunca foi tão verdadeiro o juízo de que a
ativação econômica afeta a estrutura das oportunidades políticas.
Pelo primeiro processo, à complexidade e crescimento do Estado soma-se a
expansão da atividade política, favorecida após 1985 pelo colapso da fancaria
de 1964, visível na afirmação de um amplo multipartidarismo, da consolidação de
um eleitorado gigantesco e do princípio da bienalidade eleitoral. Olhos
cândidos verão nesse processo uma comovente consolidação dos princípios da
representação política. Infelizmente, não se pode descartar o travo amargo da
suspeita de que a expansão da política abrigue de modo parasitário a expansão
de negócios de captura, de intermediação e de aberta predação.
Pelo segundo processo, a atividade de "ganhar dinheiro" ganha
foros de princípios de primeira filosofia, ou de "variável
independente", como sustentam poetas dedicados ao estudo da política. Tal
expansão, a partir de certa escala, implica o aproveitamento de oportunidades
de acumulação abertas por decisões governamentais, tanto de alienação do
patrimônio público como via programas de "aceleração do crescimento".
O capitalismo político brasileiro resulta da associação desses dois princípios.
Ambos fazem da ilimitação da acumulação - política e/ou patrimonial - um
verdadeiro ideal regulatório. Em termos mais diretos, maximização de poder e
maximização de dinheiro - associadas ou independentes - mantêm no Brasil
relações incertas com o âmbito da legalidade.
A Ação Penal 470 - para além dos dramas pessoais que envolve - lida com
os efeitos da ilimitação no âmbito da política. A ação penal que condenou o
empresário de Goiás lida com os efeitos da ilimitação no domínio da atividade
econômica. Em ambos os casos, trata-se de considerar a seguinte disjuntiva:
princípios de legalidade devem se sobrepor aos apetites políticos e econômicos,
ou a vitalidade e a espontaneidade dos empreendedores - políticos e econômicos
- devem criar sua própria esfera jurídica e moral?
Renato Lessa - é professor titular de Teoria Política da UFF,
investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
e presidente do Instituto Ciência Hoje.
Fonte:
Aliás / O Estado de S. Paulo
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