Neste artigo, a pesquisadora Beatriz Resende defende o trabalho de servidores da Fundação Casa de Rui Barbosa, criticados pelo ex-presidente da instituição, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que reunciou em janeiro, e pelo sociólogo Emir Sader, que chegou a ser indicado para o cargo em 2011 mas caiu antes de assumir.
Diante de infelizes declarações que vieram a público sobre a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e seus servidores, sinto-me na obrigação de tornar igualmente público meu depoimento de toda uma vida acadêmica sobre a Casa e seus pesquisadores.
Foi na Casa Rui, como chamamos, com intimidade, esta importante instituição, que escrevi minha dissertação de mestrado, primeiro trabalho que realizei sobre o escritor carioca Lima Barreto. O acesso à documentação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, o convívio com pesquisadores de literatura e História, o estímulo do então diretor de Pesquisa, Francisco de Assis Barbosa, foram decisivos para que realizasse meu doutorado sobre o mesmo autor e continuasse a estudá-lo. Lima Barreto e o Rio de Janeiro tornaram-se objeto de pesquisa permanente, e foi em parceria com uma pesquisadora da casa, Rachel Valença, que organizei os dois volumes de “Toda crônica”, editado pela Agir, reunindo os escritos de Lima Barreto para a imprensa.
Por décadas tenho participado, como palestrante ou espectadora, dos seminários organizados pelos pesquisadores da FCRB. São sempre encontros especialmente antenados com o que de novo surge nas investigações sobre arte, literatura, História e, mais recentemente, políticas culturais. Falo das áreas que me dizem respeito, porque são as que conheço melhor. A cada um desses agradáveis e provocantes encontros, me espanta o ânimo dos organizadores, capazes de contornar as inúmeras dificuldades que existem no serviço público, especialmente nas instituições federais, para que se convidem palestrantes estrangeiros, se ofereça hospedagem a quem não é do Rio e assim por diante. É o estímulo que nos oferecem que nos leva à Rua São Clemente.
Pesquisas da casa são referência imprescindível
Nos últimos anos, como parecerista e representante da área de Letras, primeiro na Faperj e agora no CNPq, tenho tido oportunidade de conhecer projetos de pesquisa e de publicações realizados pela FCRB e constatar a alta qualificação dos autores e coordenadores de projetos, o ineditismo das propostas e a seriedade impecável do cumprimento de suas realizações.
O principal mérito da instituição, a meu ver, foi ter, ao longo dos anos, construído um perfil próprio, com objetos de pesquisa focados e continuidade. Estudos sobre o Rio de Janeiro, sobre a República, sobre a imprensa no Brasil, sobre a literatura do século XX e, agora, do século XXI, com forte ênfase em textos e documentos da Primeira República, têm nas pesquisas da FCRB uma fonte de referência imprescindível. Acervos e bibliotecas abrigados e investigados pelos profissionais da Casa são muitas vezes coleções únicas e, sem acesso a elas, seja no estudo da preciosa coleção de literatura de cordel, seja na manipulação de revistas de outros séculos, diversos trabalhos de gerações de pesquisadores não poderiam ter sido concluídos.
Sendo de Letras, não posso deixar de destacar a importância de haver na FCRB um setor de Filologia. Os estudos de Filologia estão praticamente extintos no Brasil. Na Casa Rui trabalha-se com estabelecimento de texto, mas em momento algum os estudos literários separam-se da reflexão teórica mais contemporânea. Isso é raro, especialmente porque os resultados de pesquisas são partilhados em publicações e seminários e confrontados com investigações de outras instituições. Tudo isso convive com a democratização do saber que significa a difusão online de revistas como a “Escritos” ou o site “Machado de Assis em linha”. Além de ensaios dos pesquisadores, que não se agarram à propriedade de seus estudos. Sempre com um padrão gráfico de excelência, no papel ou na internet, que só um artista plástico do maior destaque poderia garantir.
O museu e os jardins falam por si, e sempre sugiro aos colegas de fora ou às crianças do século XXI que visitem a Casa e, em especial, a cozinha ou o quarto da babá. Como estamos na era da internet, lembro que a visita também pode ser feita online.
Observando de fora, me impressiona algo que, na falta de melhor palavra, chamaria de “amor à camisa”. Os servidores da FCRB têm resistido aos momentos mais difíceis pelos quais a cultura passou neste país. Resistido a políticas de desmonte, de descaso, de indiferença, que, entre nós, infelizmente não são incomuns.
Cada perda que a Fundação Casa de Rui Barbosa sofre, seja de estudiosos que, diferentemente de Francisco de Assis Barbosa e de Adriano da Gama Kury, que ficaram na Casa até o fim de seus dias, decidem aceitar convites mais interessantes de outros lugares, ou acervos de escritores brasileiros que deixam de ser adquiridos e tratados, é uma perda para todo o país, perda inestimável que talvez só no futuro se possa avaliar.
Acervos culturais e de memória ou espaços de pesquisa e debate inteligente não precisam ser atacados, proibidos, deliberadamente destruídos. Podem morrer em silêncio, ir sucumbindo, desaparecendo e, se não chamarmos a atenção em voz alta e não cobrarmos com veemência sua preservação, correm o risco de deixar o cenário da cidade e do país sem que muitos notem.
*Beatriz Resende é professora titular da UFRJ, “Cientista do Nosso Estado” pela FAPERJ e pesquisadora do CNPq
Fonte: Prosa / O Globo
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