Num tempo de autoproclamado neodesenvolvimentismo, apesar da modéstia das taxas de crescimento, pode-se prever que viveremos não 50 anos em 5, como na situação original, mas pelo menos 2 anos em 1 só, com a superposição de 2013 e 2014 num período mais ou menos contínuo de diferenciação de candidaturas, apresentação de programas divergentes e, por fim, eleições presidenciais propriamente ditas.
Sendo a política, na concepção de falecido político mineiro, sagaz e conservador, uma atividade que guarda relação com o fugaz desenho das nuvens, adivinhar o que nos reserva esse tempo compacto de dois anos é tarefa que assustaria até um autor acostumado a dramatizar ambições, imaginar golpes da fortuna, coreografar danças e contradanças na alma de personagens que não são nunca autores isolados de si próprios. Afinal, como lembrava Ulysses, o patrono da moderna democracia brasileira, as circunstâncias desempenham sempre função crucial, delimitando, corrigindo, ampliando ou mesmo anulando o papel que cada personagem se atribui no correr do drama.
Houve época em que a primeira encarnação da social-democracia brasileira, chegada ao poder em 1995 na esteira de bem-sucedido plano de estabilização, requeria para si um poder que durasse 20 anos. Vinte anos, diziam, é o tempo que seria necessário para a reforma integral do capitalismo brasileiro num sentido que diminuísse drasticamente o poder do Estado - simbolicamente sintetizado na era Vargas, a qual se projetava, com a roupagem do autoritarismo militar, para o "Estado Novo da UDN" - e libertasse a sociedade capitalista de uma tutela tornada anacrônica. Prolongar a tutela seria tolher as energias e deformar a nova sociedade já plenamente burguesa, assim como antes sucedia ao corpo das crianças por causa do imemorial costume de enfaixá-las a pretexto de lhes garantir crescimento saudável.
A segunda encarnação da social-democracia, no poder há dez anos, não ambicionou nem ambiciona menos. Para realizar seu programa, nunca, jamais tentado na História do Brasil, de desenvolvimento e inclusão social acelerada, especialmente por meio do consumo popular, os mesmos 20 anos ou mais de poder continuado seriam o mínimo requerido. Até nisso esses irmãos siameses desavindos ferozmente, como não raro acontece nos enredos bombásticos, se parecem. Fratelli, coltelli - dizem expressivamente os italianos.
Um dos mais argutos observadores da vida brasileira (cf. Luiz Werneck Vianna, A Modernização sem o Moderno - Análises de Conjuntura na Era Lula, Editora Contraponto & Fundação Astrojildo Pereira, 2011) entendeu aquela ambição dos novos donos do poder como um "Estado Novo do PT", entidade omnívora capitaneada por um partido de esquerda que, uma vez assentado na Presidência da República, pretendeu assimilar tudo e o contrário de tudo, renunciando, no mesmo movimento, a ser fator de ativação da vida cívica e do "progresso intelectual de massas". Nada mais distante, por sinal, da elaboração refinada e complexa de uma nova hegemonia e de um equilíbrio social e econômico mais avançado, que exigem, acima de tudo, escrupuloso respeito às normas do Estado Democrático de Direito, o que exclui o "subversivismo elementar" evidenciado, por exemplo, não só na operação dos fatos rotulados como "mensalão", como na reação juvenil e intempestiva às decisões da Suprema Corte, pedra fundamental na defesa dos princípios da Carta de 1988.
Vitórias eleitorais sucessivas podem ser alicerçadas menos numa estratégia hegemônica de longo fôlego do que na criação de mitos extemporâneos - afinal, todo Estado Novo, seja da UDN, seja do PT, demanda alguma forma de DIP e o devido aparelho intelectual. A coalizão de poder produzida por tais vitórias, no entanto, costuma ter um déficit programático que se acentua dramaticamente em conjunturas críticas. Ainda em 2010, a dissidência aberta por Marina Silva sinalizava que a este neodesenvolvimentismo de perfil baixo falta, e talvez de modo insanável, a perspectiva da requalificação ambiental. E num contexto em que a palavra de ordem é "destravar" investimentos, o horizonte pode se restringir ainda mais, a ponto de o meio ambiente, definitivamente, passar a ser muito mais obstáculo a ser cancelado do que recurso para a renovação da economia e reformulação do modo de viver.
A dissidência de Pernambuco, ainda por ser medida e pesada, introduz um personagem saído do coração da mudança eleitoral induzida pelo petismo e seu sistema de bolsas. Pode-se argumentar que pouco se sabe deste PSB dos nossos dias, cuja relação com o venerável partido de Hermes Lima e João Mangabeira é, na prática, inexistente. Argumento forte, a exigir respostas sólidas dos seus líderes, assim como de Marina Silva se espera uma articulação partidária de tipo "orgânico", para que a ação política se descole da área ambiental em sentido estrito e se dirija, apropriadamente, ao conjunto da sociedade.
A aceleração de tempos que marca o final das tramas é sempre a ocasião propícia em que truques se esgotam, máscaras caem e destinos se redefinem. Daqui por diante, as duas social-democracias, com as unilateralidades que protagonizaram nos respectivos ciclos de poder, podem não estar mais sós no palco e, por conseguinte, se ver impedidas de reencenar o surrado duelo de privatistas e estatistas, usado de modo meramente instrumental por falta de discurso menos maniqueu.
Novos atores, no ponto de partida destes dois anos cruciais, ensaiam atropeladamente as suas falas, e o fato de ainda parecerem em busca de uma peça ou de um autor, dadas as circunstâncias, não é necessariamente mau sinal. Por ora, muito pelo contrário, são eles que afastam o pesadelo de um monólogo interminável a governar a nossa vida.
Luiz Sérgio Henriques, tradutor, ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. É vice-presidente da Fundação Astrojildo Pereira e editor do site Gramsci e o Brasil.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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