Por toda zona sul do Rio, são multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos
Passado o Carnaval, me ponho a refletir. No final da década de 1950, o Carnaval de rua, no Rio, havia morrido. À exceção do Cordão da Bola Preta e de um ou outro bloco, quase nada havia. É certo que alguns foliões mascarados, vestidos de palhaço, de urso ou vestidos de mulher, vagavam pela Cinelândia, misturavam-se a um ou outro grupo de gente que brincava na avenida Rio Branco.
Bêbados desgarrados sempre houve e haverá, mas o Carnaval de rua, com banda de música tocando e muita gente sambando, como décadas atrás, isso não havia mais. Por que, não sei, mas lembro das conversas de foliões nostálgicos, lamentando o fim desse tipo de brincadeira carnavalesca.
Foi então que, em Ipanema, surgiu um pequeno grupo que decidiu sair para a rua, batucando e cantando. Parece que a primeira aparição desse grupo foi em 1964, pouco antes do golpe militar que viria instaurar uma ditadura no país. Não era muita gente, não, dez ou 20 pessoas e alguns músicos, creio eu.
Nascia a Banda de Ipanema, inventada por Albino Pinheiro e Ferdy Carneiro, a que aderiram Jaguar, Ziraldo, a turma do Pasquim e do Jangadeiro, mas também Sérgio Cabral e o grupo que militara no CPC da UNE e depois no Teatro Opinião, encabeçados por Thereza Aragão. Com o tempo, outros mais aderiram.
O pessoal se reunia na praça General Osório, a banda começava a tocar chamando gente, aumentando o bloco que seguia pela Prudente de Morais até a altura do Bar Vinte, se não me falha a memória. Ali dobrava e retornava pela Visconde de Pirajá de volta à praça de onde partira e onde se dispersava.
Àquela altura, já anoitecera e o pessoal bastante animado, especialmente porque, durante o percurso, parava nos bares para tomar cerveja e batidas de limão.
Era comum que, quando chegava à praça, já muita gente ficara pelo caminho, muitos pelos botecos onde enchiam a cara pelo resto da noite.
A Banda de Ipanema era, assim, uma exceção, mas, de certo modo, uma retomada do Carnaval de rua que, talvez pela importância que o bairro tomara, por nele residirem ou frequentarem seus restaurantes e bares, artistas e intelectuais de prestígio, despertava o interesse de gente de outros bairros -e a banda foi crescendo, de ano para ano.
Não demorou muito e aquele pequeno grupo inicial duplicara ou triplicara de tamanho, e com isso o entusiasmo dos carnavalescos crescia contaminando, claro, os moradores do bairro que, no começo, ficavam nas janelas vendo a banda passar.
E com isso ela também se tornou, de certo modo, manifestação política contra o regime militar. Não explicitamente e sim pelo fato mesmo de opor-se à hipócrita seriedade da ditadura: mostrar-se alegre e irreverente já era ser contra os milicos. Os anos se passaram e outras bandas começaram a surgir em diferentes bairros da zona sul do Rio: no Leme, em Copacabana, no Catete, no Jardim Botânico.
Tive que deixar o país e, assim que voltei, já estava eu lá na banda de Ipanema. Havia muita gente nova, mas os antigos companheiros continuavam lá. Em seguida, mudei-me para Copacabana e, com o tempo, deixei de desfilar. Quando voltei a participar, ela havia mudado muito. Fora alguns dos velhos participantes -Albino, Jaguar, Sérgio Cabral-, a banda tinha sido tomada por outra turma, e à frente dela iam alegríssimos travestis, vindos talvez de outros Estados.
A banda crescera bastante, não conhecia quase ninguém, ou não encontrava os amigos em meio a tanta gente. Foi a última vez que desfilei.
Pois bem, acabo de ver na televisão a banda de hoje desfilando pela Vieira Souto, tomada por uma multidão, que mal conseguia caminhar quanto mais sambar. Coisa semelhante ocorre, agora, por toda a zona sul do Rio, do Jardim Botânico a Santa Tereza, de Botafogo à Cinelândia. São multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos.
No sábado de Carnaval, aquilo que foi outrora o Cordão da Bola Preta tornara-se uma multidão que encheu a avenida Rio Branco, criando um sufoco: gente apavorada não conseguia sair dali, algumas moças desmaiaram e foram, a muito custo, resgatadas por policiais.
É, a vida muda e, às vezes, para pior.
Fonte: Ilustrada /Folha de S. Paulo
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