Em coletânea de colunas publicadas no GLOBO, jornalista narra o desenrolar do julgamento do mensalão
O novo livro de Merval Pereira, “Mensalão” (Editora Record) — que será lançado na Livraria da Travessa do Shopping Leblon na terça, dia 26, às 19h —, é um manual de cidadania, destinado a todos os que, embora diante de uma democracia moralmente agonizante, resistem e apostam no amanhã. Porque, em meio aos destroços de um cotidiano politicamente enfermo, ainda é possível identificar saídas recuperadoras. Não por intermédio da mera reciclagem do lixo, mas pela restauração, pela reoxigenação de verdades nas quais continuam a acreditar o homem, o indivíduo social, os verdadeiros cidadãos, a insubstituível Justiça, o Estado de Direito. Aqui se escreve a história transparente do espantoso delito praticado contra os bons costumes democráticos. Aqui aparecem, à luz do dia, “tenebrosas transações” que se escondiam na escuridão da noite dos negócios partidários.
Queira-se ou não, goste-se ou não, o fato é que o super episódio “mensalão” alcançou surpreendente e instrutiva repercussão na opinião pública nacional e mesmo internacional. A nossa imprensa livre — ainda bem que livre —, tem sido impecável na cobertura dessa até então encoberta trama contra o projeto democrático republicano.
O livro de Merval Pereira é o painel alarmante e incontestável de uma grande falcatrua. “Desvio de dinheiro público” que, quando lava o dinheiro, suja a alma. Se fizermos um balanço criterioso, isento, entre o que a população inerte ganha com a assistência social, dirigida ou não, e o que perde com a corrupção, explícita ou não, os resultados serão escandalosamente desfavoráveis para os desprotegidos.
Opinião pública como fiscal
O ministro Celso de Mello, decano do Superior Tribunal Federal, não vacilou em esclarecer, com a sua habitual precisão: “corruptos e corruptores, (são) os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, os delinquentes marginais da ética do Poder, os infratores do erário, que portam o estigma da desonestidade. E, por tais atos, devem ser punidos exemplarmente na forma da lei”.
A Justiça soube resistir às pressões do Estado fatiado. E evitou que ela mesma fosse fatiada. Vale agora fazer justiça à Justiça. Ficou claro que os protagonistas, os coadjuvantes, e até os extras, da cena pública, estavam todos unidos na partilha da degradação política. Logo, de nada adianta chorar o leite derramado, nem reclamar da “judiciarização” da política. Quando os mandatários políticos se envolvem em ações criminosas, essa “judiciarização” torna-se inevitável. E permitiu estabelecer um divisor de águas entre os magistrados íntegros e os comissários destituídos de saber e imaginação.
Será que as coisas estão mudando? É provável. A ministra Carmen Lúcia disse, a certa altura do campeonato, que “o Brasil mudou”. Deus lhe ouça, dizemos nós.
O que não se pode mais dizer é que o mensalão foi uma “farsa”. Ele foi uma evidência cruel, um tiro no pé da democracia. Só não foi no coração graças à Procuradoria Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal. A partir de agora, a lavagem deslavada, a doação oculta, o famoso “caixa dois”, passarão a ser tratados no severo âmbito da defesa da sociedade. O labirinto judiciário ficou transparente. O STF saiu engrandecido dessa empreitada. A farsa verdadeira terminou sendo, e talvez continue sendo, a recusa intempestiva do mensalão, o “mais importante julgamento da história política do Brasil”.
É verdade que ainda sobrevivem, desinibidamente, aqueles que buscam embaralhar os critérios, com o propósito de transformar réus em heróis. A subversão do tripé republicano não é outra coisa senão a tentativa de ferir de morte o compromisso democrático, fraudando, transmitindo, sobre antenas impróprias, a eletricidade sem energia, a iluminação sem luz, o telefone sem linha.
Se levarmos em conta as proporções de cada uma, teríamos de admitir que a corrupção de outrora se processava em patamar artesanal. Já hoje se verifica em escala industrial, e se fala em “cadeia de corrupção”. E todo esse desvendamento oportuno se deve à imprensa livre e independente. Ela é hoje o único partido inteiro.
A reação subdesenvolvida como resposta à decisão do STF compromete o equilíbrio dos poderes da República, e expõe a inidoneidade e o cinismo de nossas representações eleitoreiras.
A questão da qualidade passa ao largo das disputas eleitorais e, evidentemente, das siglas partidárias. Siglas fantasmas que falam em nome de necessidades irreais. As disciplinas encarregadas de levar adiante o trabalho de qualificação societária nunca recebem o tratamento necessário na bolsa de valores das construções orçamentárias, submetidas parlamentarmente às injunções clientelistas. O vácuo educacional e cultural pode ser visto a olhos nus. Quem aprende mal, vota mal. A inclusão social ou é qualitativa ou não é.
Tudo isso está muito presente no olhar atento e solidário de Merval Pereira. Militante da informação qualificada, ele jamais se furta a combater o bom combate, com a serena coragem cívica, aquela que dispensa a bravata e o exibicionismo. Chego até a imaginar, sem muito realismo porém com muito boas intenções, que o livro de Merval Pereira deveria ser distribuído nos nossos educandários, para que os jovens brasileiros fortalecessem as suas imunologias éticas, e aprendessem a se defender desde cedo dos assaltos demagógicos que proliferam por todos os lados.
Uma prova concreta de que a esperança nunca foi abandonada são as palavras finais do livro de Merval Pereira: “O que importa, hoje, no Brasil, é que há instituições que podem trabalhar com independência, e a opinião pública atua fortemente para frear abusos de governos autoritários”.
“Mensalão” é o diário do julgamento, a radiografia, e uma espécie de sinal de alerta à memória coletiva, em um país cultor da amnésia. O país em que, como dizia o saudoso Millôr Fernandes, citado por Merval Pereira, “a cada quinze minutos o brasileiro se esquece dos últimos quinze minutos”. Para além do “domínio dos fatos”. Porque todo fato é feito, e nem todo feito tem efeito. Aqui estamos frente a frente com o acontecimento efetivo, ao qual devemos fidelidade a bem da verdade.
*Eduardo Portella é escritor e professor, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Fonte: Prosa / O Globo
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