Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado
Passaram-se quarenta anos. Duas novas gerações de chilenos sequer eram nascidas quando o dia se fez noite na manhã do 11 de setembro de 1973 e a ditadura se instalou no país por 17 anos. Mas, na próxima quarta-feira, 40º aniversário do golpe militar que desapareceu com 2.300 opositores e torturou perto de 40 mil, o Chile vai relembrar.
A cada efeméride tem sido assim. E nas datas redondas como a deste ano o passado se aviva mais.
Em Deltona, cidade situada ao sul de Daytona Beach, no estado da Flórida, um vendedor de automóveis americano de 64 anos preferiria permanecer à margem dessas lembranças. Ele se chama Pedro Pablo Barrientos, tinha 24 anos e era tenente do Exército chileno em 1973. Mudou-se em 1989 para os Estados Unidos, onde tratou de adquirir nova cidadania. Esta semana, a família do músico Victor Jara entrou com um processo contra ele numa corte distrital de Jacksonville. Acusa-o de ter torturado Jara pessoalmente e sido o autor do primeiro dos 44 tiros que vararam o corpo do cantor popular depois de preso.
A ação foi encaminhada em nome da viúva e de suas duas filhas pelo Centro de Justiça e Responsabilidade, de São Francisco, baseada na Lei de Proteção a Vítimas de Torturas. Sancionada em 1991, essa legislação federal permite que cidadãos residentes nos Estados Unidos sejam processados em território americano quando suspeitos de violações de direitos humanos em outros países.
Pela primeira vez este que é um dos episódios mais encruados do 11 de setembro chileno parece ter uma real chance de ser esclarecido.
Na semana inicial do golpe todos os boatos eram críveis, por inverificáveis. A nova ordem militar de Augusto Pinochet havia cortado boa parte das linhas telefônicas na capital, e o toque de recolher era draconiano, impedindo que uns soubessem com certeza da sorte dos outros.
No caso de Victor Jara, soube-se apenas que fora preso junto com uma centena de estudantes e professores da Universidade Técnica Estadual e que, cinco dias depois, a bailarina inglesa Joan Turner Jara fizera o reconhecimento do corpo do marido no necrotério municipal. Sepultou-o sozinha, no Cemitério Geral de Santiago, com a ajuda do motorista do rabecão.
O venerado Jara era a voz do Chile socialista de Salvador Allende. Cancioneiro e poeta, compositor popular, professor e ativista político, além de dramaturgo e apaixonado pelas raízes folclóricas da Nueva Canción Chilena, era um letrista engajado e autor de músicas que arrebatavam a classe operária (“Te Recuerda Amanda”).
E esta voz tinha sido eliminada. As primeiras falsas certezas asseguravam que ele fora levado para o Estádio Nacional onde lhe teriam decepado as mãos de músico antes de executá-lo, como ocorrera com Che Guevara após sua captura na Bolívia — só que Guevara já estava morto ao ser mutilado.
Na verdade, Victor Jara sequer conseguiu chegar ao Estádio Nacional. Morreu numa arena menor. No centro de detenção improvisado do Estádio Chile foi logo identificado por um oficial e teve uma primeira avalanche de chutes e coronhadas à vista de todos. Com várias costelas quebradas e um olho inutilizado, permaneceu imóvel 24 horas ao alcance da bota militar, sem alimento ou água. Naquele mesmo estádio, quatro anos antes, fora aclamado vencedor do primeiro Festival da Nueva Canción Chilena com “Oração de um trabalhador”.
No domingo dia 16 circulara a notícia de que alguns detentos seriam libertados, o que levou os demais a escrever mensagens para esposas, filhos, pais, amigos. Victor Jara foi um dos mais ansiosos. Só parou ao ser arrastado por dois soldados até uma saleta de transmissão do estádio. Mas conseguiu deixar para trás as duas folhas de papel que escreveu, rapidamente escondidas pelo advogado Boris Navia.
Não eram cartas para a mulher nem para as filhas. Era um poema. Não tinha título. Descrevia o ambiente à sua volta. Foi-lhe dado, post mortem, o título “Estadio Chile”.
Os detentos fizeram duas cópias, entregues a um estudante e um médico que seriam libertados. Um deles foi revistado. Navia, que escondera o manuscrito original numa fenda aberta na sola do sapato, foi levado para o centro de torturas do velódromo. Mas a terceira cópia alçou voo e correu mundo.
A última visão que Navia e seus companheiros tiveram de Jara foi do seu espancamento a golpes de fuzil na saleta do estádio. No final da mesma tarde, cruzaram o saguão principal para serem transferidos para o Estádio Nacional. Ali se depararam com cerca de 50 cadáveres espalhados pelo chão. Entre eles, o de Victor Jara.
Foi somente em 2009 que a investigação conduzida pelo juiz Miguel Vásquez conseguiu chegar ao nome do homem que teria apertado o gatilho do primeiro tiro contra a nuca do prisioneiro. Depois, o oficial teria ordenado aos soldados presentes que prosseguissem com a fuzilaria. Embora Pedro Barrientos negue jamais ter sequer cruzado com o músico, a família Jara espera que o Supremo Tribunal chileno encaminhe o aguardado pedido de extradição aos Estados Unidos.
Se Barrientos algum dia retornar, talvez se pergunte para que serviu tanta brutalidade. O Estádio Chile foi rebatizado de Estádio Victor Jara. As fitas máster das gravações do músico que a ditadura se empenhou em destruir foram laboriosamente substituídas por outras versões. Brotaram remixagens, remasterizações, foi lançada uma caixa com 9 CDs, republicada uma antologia com seus poemas. Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado. Hoje, Victor Jara teria 81 anos.
Dorrit Harazim é jornalista
Fonte: O Globo
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