• Datas diferentes marcam briga por protagonismo no cenário geopolítico mundial
- O Globo
RIO - “Deus abençoe a todos! Esta é a vitória! É a vitória da causa da liberdade em todas as terras. Em toda a nossa longa história nunca vimos um dia maior do que este”. Com esta declaração, o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill afirmou para uma multidão na cidade de Whitehall, no Reino Unido, que, no dia 8 de maio de 1945, o exército inglês vencera a guerra na Europa.
O desfecho da Segunda Guerra na Europa aconteceu após o fuzilamento, em abril de 1945, do líder italiano Benito Mussolini e do suicídio do nazista alemão Adolf Hitler, em Berlim, depois do cerco de tropas soviéticas. Os países vencedores já se preparavam para anunciar o Dia da Vitória. Porém, a História acabou ficando com duas datas para marcar a mesma comemoração.
— O Ocidente acabou anunciando nas horas finais do dia 8. Isso, na Rússia, já era dia 9. O que gera duas datas: o Dia da Vitória na Europa e o Dia da Vitória Soviético — afirma Marcello Scarrone, doutor em História pela UFRJ.
A escolha de datas já começava a apresentar uma nova disputa que pautaria as décadas posteriores.
— O anuncio do fim da guerra não foi feito conjuntamente porque tanto os Estados Unidos como a União Soviética já disputavam as áreas de influência e planejavam a divisão da Europa. Depois de os EUA conseguirem a rendição incondicional em Reims, Stálin não aceitou que a URSS, nação que mais perdera homens em toda a guerra, não tivesse protagonismo no processo — afirma o historiador Karl Schurster, doutor pela UFRJ em História.
Por este motivo, ontem se comemoraram os 70 anos do Dia da Vitória na Europa. Um dos primeiros eventos aconteceu à meia-noite na cidade de Gdansk, na Polônia, no local onde o primeiro tiro da Segunda Guerra foi disparado, em 1939. A celebração foi marcada por uma salva de 21 tiros, e holofotes iluminaram o monumento aos soldados poloneses. O evento foi promovido como parte de um boicote de líderes da Europa Oriental às celebrações do Dia da Vitória Soviético, que acontecem hoje em meio à tensão gerada pelo posicionamento russo em relação ao conflito na Ucrânia. Na Alemanha, o parlamento realizou uma sessão especial para homenagear as forças aliadas do Ocidente e o exército soviético, que derrotaram as tropas nazistas.
Já os russos utilizam a data de hoje para tentarem se reinserir como protagonistas no cenário mundial.
— Os russos ficaram deslocados do protagonismo durante duas décadas, desde o fim da União Soviética. Hoje, as comemorações no país se valem desta data histórica para evocar essa noção de potência do país — afirma Scarrone.
Este poder será ilustrado pelo lançamento do tanque Armata, considerado por analistas um dos mais mortais do planeta. O armamento está sendo visto como o grande símbolo do poder bélico da Rússia desde o fim da União Soviética.
Longe da disputa armamentista, no Brasil a presidente Dilma Rousseff condecorou 12 pracinhas que lutaram ao lados dos Aliados e comemoraram a vitória no dia 8 de maio.
A exaustão no final do conflito
Entre os registros deste dia há 70 anos, encontra-se a foto dos soldados brasileiros que desembarcaram na Itália segurando o jornal O GLOBO, cuja manchete anunciava o fim da conflito.
No mesmo momento, os líderes mundiais se pronunciavam sobre a vitória. Nos Estados Unidos, o presidente Harry Truman afirmava que o mundo estava “livre das forças do mal”. Já na Alemanha, o ministro do Exterior, Lutz von Krosigk, afirmava pelo rádio que continuar a luta seria somente provocar uma “sangueira insensata”.
— A população alemã estava exausta e bastante desgastada com o esforço de guerra. Para a Alemanha, a guerra tinha chegado ao seu limite. O país não possuía mais estrutura logística, técnica e tática para poder continuar o conflito — afirma Schurster.
Diferentemente do que ocorreu na Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha adotou um discurso de vítima, na derrota na Segunda Guerra não houve espaço para esse tipo de interpretação.
—É bastante necessário voltarmos ao que disse o presidente alemão Richard von Weizsäcker em 1985: “O 8 de maio foi o dia da derrota”. Essa expressão é fundamental porque não permite a continuação de uma história que construiu os alemães como vítimas da própria Alemanha. A expressão “derrota” foi largamente usada para assumir publicamente a responsabilidade da sociedade civil nesse terrível e traumático evento — analisa Schurster.
Vergonha alemã pelo extermínio
E não seria só com a derrota que a Alemanha teria de conviver. Descobertos nos instantes finais do conflito, os campos de extermínio nazistas trouxeram vergonha para a comunidade alemã.
— Era uma nova realidade que estava sendo aberta. Uma ferida que aumentava a cada campo descoberto — conta Scarrone.
Schurster afirma que este constrangimento evidenciou a relação de consentimento que os alemães tiveram durante a guerra com os atos promovidos pelas lideranças nazistas.
— Com a progressiva abertura dos campos de extermínio, a própria população foi obrigada a enterrar as pilhas de corpos para que tivesse clareza de suas ações, de seu consentimento durante o conflito.
Se por um lado a população alemã teve que conviver com os fantasmas do passado, por outro, o presente também mudaria drasticamente. O Dia da Vitória, além de marcar o fim do conflito mundial, também simboliza o início das disputas das potências vencedoras pela Alemanha. A questão não seria mais territorial, passara a ser ideológica. Com o declínio do nazismo, a emergência dos Estados Unidos e da União Soviética como duas grandes potências gerou a bipolaridade que colocava frente a frente o modelo capitalista e o socialista. No meio disso, ficaram os alemães.
—Uma nova ordem mundial foi instituída com o fim da guerra. Ela possibilitou a existência de um mundo que durou pouco menos de 50 anos, pautado numa divisão bipolar, de luta anunciada ainda durante o conflito mundial, entre EUA e URSS. A estrutura de organização do sistema de equilíbrio de poderes foi alterada. A Alemanha foi transformada num palco de disputas para representação dos sistemas políticos e ideológicos dessas duas nações — afirma Schurster.
Setenta anos depois, os países envolvidos no conflito assumem posições diferentes.
— A Alemanha derrotada hoje lidera os países europeus. A Rússia tenta buscar seu lugar como protagonista e os Estados Unidos se mantêm como principal potência mundial, mas perdem o fôlego. Isso faz com que esta data deixe de ser somente histórica para se tornar um marco político — diz Scarrone.
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