O cadáver estava ali, enrijecido, na beira da praia, batido pelos primeiros raios do sol da manhã e lambido pelas ondas suaves da maré vazante da segunda feira A praia estava deserta e era uma figura feia de se ver. Tinha os braços erguidos em volta da cabeça, como se, ao morrer, tivesse querido e tentado, desesperadamente, defender-se de algo monstruoso. Nas mãos, no rosto, em um dos olhos, era visível o estrago deixado pelos siris.
Caiu na rede é peixe. É praxe, na guerra que se trava no fundo do mar, quando um descuidado daqui de cima, cai lá dentro e apaga.
O capitão havia caído na água na véspera, domingo de tarde, na festa de lançamento do barco Balsemão ao mar. A praia estava cheia de gente A maré alta.O moço havia bebido de tudo. Estava já meio lerdo, embriagado, nos momentos culminantes da inauguração, da solenidade quando, num vai e vem das ondas, seu revolver escorregou da cintura e foi parar no fundo negro-azulado do oceano encapelado, hostil. Onde o barco estava ancorado. Ele então que não podia estar um instante sem sua arma, com a qual combatera nos campos da Itália e da qual costumava dizer que salvara a democracia no mundo, não suportando a idéia de vê-la desaparecer no pélago profundo, resolveu pegá-la onde estivesse. E, da intenção ao gesto, estimulado pelas doses a mais, foi um segundo. Antes mesmo que alguém tentasse impedi-lo, jogou-se e lá ficou. Foi um zum-zum-zum danado. Um ohhh! de espanto saiu das bocas presentes. As pessoas se assomavam às bordas do barco e muitos barcaceiros experientes no trato com as ondas da maré alta, se jogaram ao mar na tentativa de resgatá-lo. Tudo inútil. Sumiu como por encanto. O incidente só não estragou a festa de Balsemão porque era, justamente aquela a parte final. O barco estava no mar e os convidados tomavam um coquetel a bordo.
À noite, a natureza se enfureceu. Não era comum, em pleno e tórrido dezembro, tanto vento, tanta chuva! A Ilha já deserta e apagada escutava às escuras os estrondos do trovão e a fúria da tempestade. A lua, muito cedo, fugiu assustada para o outro lado da fronteira do céu, onde estavam as estrelas. E ficamos nós cá, debaixo da noite sem rumo. Nunca se viu daquilo, disseram depois os mais velhos, nem nos tempos da Capitania Hereditária. Um vento louco, danado e enfurecido retorcia as ondas do mar e as atirava de encontro à praia, às estacas de coqueiro, em um urro tenebroso, de ódio como se quisesse puni-lo pela morte do capitão. A Ilha estava prestes a desentroncar-se de seu implante no coração da terra onde vivia há milênios, abraçada pelo mar, e sair navegando pelas águas, sem qualquer destino, podendo chegar, quem sabe, às costas da África ou às tais "Índias Ocidentais".
Foi esta tempestade furibunda que fez com que o mar vomitasse na praia o corpo do capitão, lá do buraco negro onde se escondera, bem debaixo de Balsemão e o deixasse nas areias brancas onde o foi encontrar, inerte, o primeiro raio de sol da manhã.
Depois veio o delegado que verificou os estragos no cadáver e tramitou-lhe a remoção. Providenciou-se um caixão sem tampa, pois não havia força bruta de homem nenhum na Ilha que conseguisse desdobrar os hirtos braços do Capitão que assim se foi ao cemitério, sobraçando a própria cabeça e ostentando na cara roída de siri, o mesmo ar contrariado que expressou no momento em que se lhe escapou a arma, o símbolo mais querido de sua luta física, real e verdadeira, contra o fascismo.
Durante o velório, alguém incomodado com a idéia de que o corpo baixasse à sepultura, assim, naquela postura um tanto ou quanto esquisita, indagou ao comissário se não seria melhor que lhe serrassem os braços e os acomodassem dentro do caixão. Mas o vigário interferiu e vetou de pronto a idéia macabra. E antes que surgissem mais especulações, tratou logo de concluir a encomendação do corpo. Depois se cobriu o caixão com um lençol branco. E, assim o capitão desceu à sepultura onde até hoje descansa em paz.
Contam muitos pescadores que, nas noites de lua cheia, os que regressam do mar nas altas horas da madrugada avistam o vulto do Capitão, flutuando sobre as águas, no porto de Balsemão, procurando sua arma.
Cruz! Credo!!!
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Graziela Melo
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