• Quais lições podemos tirar da crise política?
- Valor Econômico
A ciência política brasileira fez avanços consideráveis, tanto do ponto de vista teórico como metodológico. A busca por rigor no tratamento dos dados e sofisticação analítica permitiu, por exemplo, que identificássemos os pré-requisitos para o funcionamento virtuoso do presidencialismo multipartidário.
Entretanto, a deterioração abrupta da governança política e econômica tem gerado novos desafios interpretativos. Na realidade, o Brasil vive hoje um acúmulo de crises: econômica, política, de representação, ética e moral, do sistema partidário, do seu estado de proteção social, etc. É extremamente difícil estabelecer onde uma dessas crises começa e quando outra termina. A sensação de descarrilamento e de mal estar é generalizada: inflação alta, desemprego crescente, recessão econômica, corrupção, baixa popularidade da presidente, quebra de sua coalizão, risco de impeachment e de cassação de sua candidatura, etc.
Como chegamos até aqui? Por que os equilíbrios virtuosos alcançados ao longo das duas últimas décadas não conseguiram se sustentar ao longo do tempo? Até que ponto essas crises decorrem de problemas estruturais do sistema político? Seriam consequência de problemas de governo, especialmente no que diz respeito a más escolhas de gerência de coalizões?
Por que nós, cientistas políticos, não fomos capazes de prever tais crises?
É possível identificar pelo menos três interpretações concorrentes, mas não necessariamente excludentes, para a crise política brasileira.
A primeira visão argumenta que não houve descontinuidades ou mesmo deterioração na forma de gestão dos presidentes brasileiros pós-redemocratização.
Ou seja, Lula e Dilma geriram o nosso presidencialismo multipartidário de forma similar a Fernando Henrique ou Itamar. Os problemas seriam decorrentes de fatores exógenos à gestão tais como: a eleição de um polêmico "cavaleiro das trevas" à presidência da Câmara dos Deputados; o fortalecimento extemporâneo de um partido político ideologicamente amorfo, como o PMDB, e a decorrente vulnerabilidade política do governo diante deste parceiro; ou ainda, a transferência de responsabilidade à crise econômica internacional e/ou seguidos equívocos na formulação da política econômica.
A segunda interpretação acredita que o desenho do nosso sistema, ancorado em uma fragmentação partidária excessiva, galopante e independente das escolhas da própria gestão política, levaria a custos proibitivos de governabilidade de forma inexorável, sempre seguido de cooptação financeira e corrupção. A deterioração, portanto, seria o caminho quase natural de um desenho institucional claramente disfuncional. Pelo desenho da nossa constituição, presidentes não teriam condições de governar, senão cooptando cada vez mais partidos. Cairíamos assim em um ciclo vicioso: participação de partidos em governos passando a "valer dinheiro" (sujo ou não), seja integrando a coalizão ou "vendendo tempo de TV". Esse quadro estimularia a criação de mais partidos, gerando maior necessidade de cargos, maiores custos para gerenciar coalizões e mais corrupção. Em outras palavras, não foi uma questão de "azar" a estratégia monopolista e hegemônica do PT de governar e gerenciar o presidencialismo. Isso aconteceria cedo ou tarde, pois tais problemas seriam decorrentes da forma como o sistema foi concebido e das implicações desta concepção sobre a dinâmica evolutiva do sistema.
A terceira interpretação identifica a crise política como, fundamentalmente, uma crise de governo. Argumenta que o presidencialismo de coalizão foi transformado em presidencialismo de cooptação nos governos do PT. Os problemas políticos decorrem menos de um desenho institucional inadequado e mais das escolhas de um partido e de suas pretensões hegemônicas, ao se defrontar com o elevado grau de consenso requerido pelas instituições políticas para governar. O governo tucano geriu nosso presidencialismo de coalizão compartilhando poder entre os partidos da base aliada: coalizões ideologicamente homogêneas próximas do legislador mediano do Legislativo, menos partidos na coalizão e gestão compartilhada do poder Executivo. Os governos petistas, por sua vez, construíram coalizões ideologicamente mais heterogêneas, na média mais à esquerda do parlamentar mediano do Legislativo, e pouco compartilharam o governo com aliados, refletindo a sua pouca confiança nos partidos de sua coalizão e oportunismo das eventuais alianças. Os governos do PT preferiram buscar atalhos e o resultado foi a crise política e a grave recessão.
Independentemente do grau de acerto e erro de cada visão, há barulho lá fora e a ciência política brasileira precisa enfrentá-lo. A saída, ainda que desconfortável, é a de buscarmos lições da crise, que aqui resumo em três. A primeira é que superestimamos os poderes constitucionais e de agenda do presidente enquanto mecanismos capazes de superar desafios de gestão de coalizões. Essa dificuldade se tornou evidente com a eleição de um presidente da Câmara dos Deputados com preferências políticas distintas do Executivo, levando o Legislativo à posição de protagonista. A segunda lição é que o compartilhamento proporcional de poderes com aliados só gera efeitos virtuosos quando o presidente é politicamente forte. Quando o presidente se enfraquece, como ocorrido com a presidente Dilma, a proporcionalidade se traduz em cooptação e maior vulnerabilidade do Executivo.
Finalmente, a terceira lição que se pode apreender é que o funcionamento virtuoso do presidencialismo de coalizão requer um presidente/líder/coordenador hábil e disposto a um jogo de caráter consociativo. Caso contrário, os custos e problemas de coordenação política adquirem um potencial predatório.
Naturalmente sempre pode haver quem prefira, mesmo reclamando, dormir com um barulho desses. Mas ainda penso que há barulho que pode virar música.
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Carlos Pereira é professor titular na Ebape da Fundação Getulio Vargas (FGV), coautor do livro "Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System"
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