O país corre o risco de uma crise institucional entre o Legislativo e o Judiciário, que se abaterá sobre o Executivo, se o Senado não exercer seu papel moderador e separar o joio do trigo no projeto desfigurado das dez medidas contra corrupção que lhe chegou às mãos. Na madrugada de terça-feira, partidos da base governista, com a colaboração do PT, eliminaram vários pontos que aperfeiçoariam o combate à corrupção, e acrescentaram outros que visam dificultá-lo - em primeiro lugar, o que estabelece o crime de responsabilidade para magistrados e Ministério Público.
É importante separar atos e intenções. A Câmara dos Deputados, por um lado, exerceu legitimamente suas prerrogativas. Várias dezenas de parlamentares, sob processo e outros na mira da Lava-Jato, porém, agiram em defesa própria e colocaram barreiras tanto para punições quanto para o avanço da Lava-Jato. Os procuradores da força-tarefa, autores da iniciativa das dez medidas, vendo-se na iminência de se tornarem eles próprios alvo da Justiça no exercício de seu trabalho, pelo elevado grau de subjetividade do que foi aprovado na Câmara sobre crimes de responsabilidade, ameaçaram abandonar a Operação Lava-Jato se o Senado aprovar e o presidente Michel Temer não vetar o pacote anticorrupção como ele saiu da Câmara. A presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse que a punição por abuso de poder fere a independência do Judiciário. Sons de panelaços voltaram a irromper na noite das grandes capitais.
Consumada na Câmara a limitação da Lava-Jato, houve rápida tentativa de colocá-lo imediatamente para votação no Senado na quarta, pelo presidente da Casa, Renan Calheiros. A manobra foi abortada pelos senadores, que deram ao projeto a tramitação normal nas comissões. O presidente Michel Temer, que poderá ter de exercer o papel de árbitro e precisa de apoio político, espera que tudo só se resolva no ano que vem, contando com o esfriamento dos ânimos e a contemporização.
Há medidas no pacote apresentado pelo MP que mereciam ser enterradas, pelo seu cunho nitidamente autoritário. É o caso das restrições aos habeas corpus, da aceitação de provas ilícitas obtidas de "boa fé" e do esdrúxulo teste de integridade. A supressão dessas medidas não muda em nada a liberdade e a capacidade de ação da Lava-Jato, que claramente não necessita delas - muito menos o Brasil.
Algumas medidas do projeto original do relator, derrubadas na madrugada revelam, por outro lado, absoluta falta de espírito público ou a defesa de interesses escusos. É o caso da supressão da tipificação de enriquecimento ilícito do funcionário público e da extinção do domínio, que permitiria o confisco de bens e valores obtidos por meio de atividades ilícitas.
Se essas mudanças dão alguma proteção ao fruto de roubo ou malversação de recursos, outras tentam impedir que se corrija o absurdo da protelação de recursos até a prescrição da pena. A intenção do projeto era que o prazo prescricional só fosse contado a partir do oferecimento da denúncia e não do seu recebimento, por exemplo.
Os deputados alvejaram diretamente a Lava-Jato na emenda que define crimes de responsabilidade. Ainda que se reconheça a urgência de nova legislação contra o abuso de poder - e ela existe - a forma escolhida foi errada. O tema exige discussão aprofundada e não o açodamento de uma emenda, em meio a um projeto de lei que não lhe diz respeito, votado apressadamente em uma madrugada. Sobre o conteúdo, há material para dizer, como disse ontem o juiz Sergio Moro, que visa "tolher as investigações".
A subjetividade da emenda tem óbvio efeito intimidatório. Um dos crimes é "promover a instauração de ação penal em desfavor de alguém, sem que exista indícios mínimos de prática de algum delito". Outro, ao contrário, é "ser patentemente desidioso [negligente] no cumprimento de suas funções", ou então "recusar-se a prática de ato que lhe incumba"; e ainda "proceder de modo incompatível com a honra e o decoro do cargo". Não é assim que se combatem arbitrariedades do poder, embora a Lava-Jato tenha nelas incorrido algumas vezes.
Entre o maximalismo dos procuradores de Curitiba e a defesa velhaca de impunidades por deputados, cabe ao Senado mediar o conflito antes que ele se agrave. O abuso de poder merece outro projeto e várias boas ideias do MP da peça original merecem ser recuperados.
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