A vida política do País é permeada de episódios esdrúxulos o bastante para confundir até mesmo os observadores mais atentos do que se passa no Congresso Nacional. Embora tratados formalmente pela imprensa como realidade fática nos cadernos de política, esses acontecimentos peculiares poderiam ser descritos por uma obra de realismo fantástico, tal o absurdo que os caracteriza. É o caso da malfadada tentativa do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) de votar um requerimento de urgência para a tramitação no Senado do pacote anticorrupção, aprovado menos de 24 horas antes pela Câmara dos Deputados. O ardil, tramado de maneira sub-reptícia no gabinete de Renan, contou com o apoio de integrantes das bancadas do PMDB, PP, PR, PT, PTB, PSB e PTC. A manobra visava a levar a matéria à votação diretamente pelo plenário, sem passar pela apreciação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa.
A apuração feita pelo Estado mostrou que Renan recorreu à artimanha porque teria ficado “irritado” com a reação do Ministério Público Federal (MPF) à aprovação do pacote de medidas anticorrupção na Câmara em termos muito diferentes do que a instituição havia proposto no documento “10 Medidas Contra a Corrupção”. Já é suficientemente grave constatar que temperança é uma virtude que faltou aos membros do MPF, dada a reação histriônica dos procuradores que se seguiu à votação da matéria na Câmara, ainda que possam ser feitas ressalvas ao conteúdo aprovado. Porém, mais preocupante ainda é observar que, entre muitas qualidades, o comedimento também parece faltar a Renan Calheiros, sobretudo na condição de presidente da Câmara Alta.
A manobra acintosa do presidente do Senado, felizmente, não prosperou. A derrota acachapante que sofreu – 44 votos contrários e apenas 14 favoráveis – não deixa dúvida quanto à estranha natureza de sua artimanha. Tentando demonstrar a fleuma que não tem, Renan ainda chegou a dizer que ficou “satisfeito” com a deliberação do plenário do Senado.
O pacote de medidas anticorrupção foi tratado com açodamento pela Câmara dos Deputados. Pressionada, de um lado, pelo Ministério Público Federal, amparado por um manifesto subscrito por mais de 2 milhões de brasileiros, e, de outro, por um grupo de deputados profundamente enredados na teia da corrupção, a Casa não dedicou à apreciação da matéria o tempo que sua complexidade e relevância exigem. Esse processo não foi ajudado pela atuação do relator da matéria, cujos avanços e recuos lavraram muita confusão. Mas o fato é que, no momento de votar, os deputados sabiam o que queriam. Tanto assim que aprovaram as alterações do pacote das 10 medidas por 450 votos contra 1 e 3 abstenções. Foi uma clara manifestação de vontade, deixando claro, acima e além de qualquer dúvida, que juízes e promotores não estão fora do alcance da lei.
O requerimento de urgência para tramitação da matéria no Senado, caso fosse aprovado, dispensaria prazos e formalidades regimentais, ou seja, privaria a sociedade de ver um tema de altíssima relevância – como o combate à corrupção – apreciado de forma responsável. Ao imaginar que um projeto de lei desta magnitude poderia tramitar em curtíssimo tempo, Renan Calheiros demonstrou só estar preocupado com seus interesses particulares – e com a satisfação de seus sentimentos mais mesquinhos –, não com o interesse nacional. A acachapante derrota mostrou que ele não controla o Senado.
Em audiência pública realizada no Senado na tarde de ontem para tratar da atualização da lei que pune o abuso de autoridade, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e o juiz federal Sérgio Moro divergiram quanto ao tratamento dado pela Câmara dos Deputados ao pacote de medidas anticorrupção. Mendes defendeu a prerrogativa dos parlamentares. Já Moro asseverou que as medidas são temas muito “sensíveis” e as alterações feitas pelos deputados precisam ser mais bem debatidas no Senado. Na divergência, ambos acertaram. A Câmara decidiu soberanamente, como lhe incumbe, mas a sociedade brasileira espera do Senado, pela importância da matéria e por sua complexidade, o exame sereno das medidas de combate à corrupção e de controle das atividades de juízes e promotores.
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