Futuro da democracia nos EUA depende do desenlace da guerra pela alma do Partido Republicano
“Nunca concederemos”, exclamou Trump diante de
uma malta de milicianos e supremacistas brancos reunidos no parque da Elipse,
chamando-os a “marchar até o Capitólio”. Quase cem anos atrás, Mussolini deflagrou
a marcha sobre Roma, mas ele mesmo não marchou, seguindo para o conforto de
Milão. O presidente americano imitou a covardia do Duce, encerrando-se na Casa
Branca enquanto seus vândalos percorriam
a avenida Pensilvânia. A versão original foi uma sedição triunfante; a
cópia, uma encenação que fugiu ao controle do mestre.
Cria
corvos e eles te arrancarão os olhos —o provérbio espanhol explica a derrota de
Trump. Os corvos violaram o roteiro, invadiram o Congresso e interromperam a
sessão de certificação
da vitória de Biden, alterando os termos da disputa pela hegemonia no
Partido Republicano. No fim, lívidos, os principais líderes republicanos —o
vice, Mike
Pence, e o líder do Senado, Mitch
McConnell— abandonaram o presidente e isolaram a camarilha de congressistas
engajados na negação da democracia.
Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado. A tocha que acendeu continua a queimar, apesar do fracasso de 6 de janeiro. O presidente sabe, desde novembro, que carece de meios para impedir a posse de Biden. O grito de fraude difundido pelo país destina-se a submeter o Partido Republicano, prendendo-o na jaula do nacionalismo branco. Trump 2024 —a campanha começou e seu estandarte é a restauração dos “direitos dos colonos”.
No
teatro parlamentar de 6 de janeiro, o núcleo de congressistas trumpistas
contestou a certificação dos resultados dos estados decisivos, exigindo o
descarte dos “votos ilegais”. As recontagens e decisões judiciais confirmaram a
legalidade de todos os sufrágios. Mas, na linguagem cifrada do Partido de
Trump, ilegais são os votos dos negros que inclinaram o pêndulo para o lado de
Biden. O programa Trump 2024 é conferir às legislaturas estaduais a
prerrogativa de suprimir
o direito de voto dos negros.
A
Constituição escrita pela nação de colonos atribuiu aos estados o poder de
designar seus delegados ao Colégio Eleitoral. No início do século 19, com a
expansão da democracia, leis estaduais transferiram ao sufrágio popular a
seleção dos representantes. Depois, entre 1865 e 1869, no rescaldo da Guerra
Civil, as emendas 13, 14 e 15 delinearam uma “segunda Constituição”, que
estendeu aos negros o direito de voto. Contudo, na prática, a densa trama de
leis e regulamentos estaduais esculpida para restringir o voto dos negros
perdurou mais um século, até a Lei dos Direitos de Voto, de 1965. O trumpismo
almeja retroceder os ponteiros do relógio da história em 60 anos, anulando as
conquistas do movimento pelos direitos civis.
No
rastro da derrota eleitoral, o presidente articulou com republicanos do Senado
de Michigan uma tentativa de invalidar, na legislatura estadual, os delegados
eleitos ao Colégio Eleitoral. Frustrada no nascedouro, a operação não chegou a
provocar julgamento numa Corte Suprema de maioria conservadora, inclinada à
interpretação “originalista” da Constituição. Mas a chama da utopia regressiva
não se apagou.
No
fatídico 6 de janeiro, Trump pretendia reforçar o teatro parlamentar da
contestação eleitoral com a encenação de um levante das ruas. “Vocês nunca
recuperarão nosso país com fraqueza”: a meta era usar as hordas de arruaceiros
para intimidar os congressistas republicanos recalcitrantes, sujeitando-os à
vontade do mestre. A invasão do Capitólio —uma derivação lógica mas imprevista
da incitação presidencial— produziu efeito inverso, desorganizando a marcação
de cena.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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